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Lei em Campo

Por que e quando o futebol precisou ser profissional no Brasil

Andrei Kampff

17/04/2019 05h00

Nem sempre o futebol foi palco de trampolim social.

Jogo se jogava por vocação. O amadorismo era o selo de um esporte pretensioso.

Isso, até o dinheiro entrar na história. O futebol brasileiro vira profissional. Pro jogador, ou pro clube?

Aconteceu nos anos 30, a reboque do talento de quem nascia aqui e da afronta econômica de outros países por aí.

Eles queriam e pagavam pra levar daqui quem jogava bem por aí. Então, a mudança não foi escolha. Foi imposição. Mas de quem?  Melhor ter salário ou ter dono?

Entenda mais sobre os (des)caminhos (?) do futebol no texto de Danielle Maiolini, advogada especializada em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.

Já aviso: as próximas linha o levarão prum belo passeio com personagens inesquecíveis de uma história indispensável de nosso jogo favorito.


 

Donos por contrato

 

Quando, em 32, a Liga Carioca oficializou a chegada do profissionalismo, o Botafogo não teve outra opção senão embarcar. Relutou o quanto pode, é verdade. Mas se até o Fluminense – aristocrático, e por isso amador por natureza e orgulho – já se colocava a favor de passar por escrito o que antes só era selado no fio do bigode, o sinal era de caminho sem volta.

 

Ainda que pra muitos (atletas, principalmente) o fim do amadorismo pudesse soar como uma chance de conseguir salário e segurança no exercício da atividade, pra outros, era uma lástima. A quem ainda entusiasmava o football forjado pelas academias que importavam da Inglaterra o sistema W.M, tornar o atleta empregado era como obrigar o esporte a descer um degrau na escadaria no Olimpo. Se aproximar dos empregados da fábrica. E a pouca gente interessava estar mais perto do chão. A maior parte, na contramão do caminho que a história parecia percorrer, gostava de dizer que vivia o futebol por amor, e dele nunca tirou vantagem, apesar de tirar.

 

A contragosto que fosse, seria, contudo, inevitável a guinada brasileira ao profissionalismo. E o motivo tinha nome. Na verdade, um, não. Vários. Lêonidas, Filó Domingos e outros tantos haviam descoberto por conta própria que o jogador amador não deve nada pro clube que também não o emprega. Podia ir embora.

 

Como um efeito dominó, bastou o Fernando Giudicelli, pouco tempo antes, fazer uma excursão pra Europa e não voltar. A notícia correu: o jogador não era do clube. Descobriram mais: lá fora, sobrava clube procurando jogador brasileiro. O Giudecelli, que já tinha sobrenome italiano, nem chegou a se preocupar com a burocracia na hora de aceitar o convite europeu. Não que isso fosse um problema. Aberta a porteira, pra ir, bastava querer. Sobrenome era pormenor. Dizem que o "Menezes" virou "Zacconi"; o "Marques", "Guarisi", e por aí vai. Iguais a eles, outros tantos enchiam o vapor pra cruzar o Atlântico.

 

Com o Leônidas, foi parecido, só que diferente. Porque por aqui não lhe pagavam o suficiente pra viver do futebol, trocara de camisa, e de país. Mas não foi pra Europa. Foi parar no Peñarol do Uruguai, que, naquela época, era quase a mesma coisa. A onda de contratações que começara do outro lado do oceano também varria o continente do lado de cá. Buenos Aires e Montevidéu profissionalizavam seus atletas pra não perdê-los de vez. Pra trazer o Leônidas e outros tantos de volta, não tinha remédio. Era a vez de o Brasil aceitar que os clubes teriam que contratar atletas pra jogar. Torná-los propriedade.

 

O Bangu mesmo levou a coisa muito a sério. Porque não precisava mais disfarçar jogadores na linha de produção da Companhia Progresso Industrial do Brasil, agora podia mostrar que no profissionalismo o atleta era do clube de papel passado. E se o amador vivia da bola de dia e da gafieira de noite, pro profissional isso havia de acabar.

 

O jogador virara empregado do clube. Se, por um lado, o clube dava algo de lá, que era o salário, tratava de tomar coisa de cá. Havia de colocá-los todos no lugar. No caso do Bangu, a Companhia levou o escrete recém-contratado pro Chalé dos Ingleses, onde iam viver de treino, jogo e algumas poucas visitas supervisionadas. Com hora pra dormir e pra acordar.

 

No Palestra, contam que a fazenda onde esconderam os atletas tinha até capataz na porteira. Sem a ordem, ninguém saía, ninguém entrava. Tava lá, escrito. Jogador do clube, por contrato. Aliás, nem só do clube. Teve um mesmo que, pra tirar do Vasco, foi um outro fazendeiro quem comprou. Era atleta do clube, mas era dele também.

O jogador, que antes achava que era preso de favor, porque mesmo sem precisar tinha quem lhe pagasse uma coisa ou outra pra jogar, mal respirara os ares da liberdade e já se vira novamente de pé amarrado. Dessa vez, com a própria assinatura.

Por Danielle Maiolini

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Referências

FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003

https://www.blogdomadeira.com.br/2012/03/rico-fazendeiro-de-eloi-mendes-negociou-a-compra-de-atacante-do-cruzeiro/

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.