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Lei em Campo

O dono do jogo de eSport é como se fosse uma federação. Ele decide tudo

Andrei Kampff

20/04/2019 12h00

O eSport é avassalador.

O crescimento em números de praticantes e em volume financeiro surpreende até especialistas.

Mesmo assim, a imensa maioria das pessoas ainda tem muitas dúvidas com relação a sua organização. Inclusive na parte jurídica.

Quem é a CBF do eSport, ou a federação responsável por regulamentar os jogos? Resposta: a desenvolvedora dos jogos. Ou seja, quem criou define quais serão as regras dos campeonatos, elas que vão filiar clubes, inscrever jogadores. Ou seja, a desenvolvedora é uma entidade de administração do desporto. Portanto, ela está sujeita aos direitos e deveres destinadas a essas entidades pela Lei Pelé.

Agora, existem modelos distintos de organização dos eventos. Um, em que a desenvolvedora concentra toda a organização; outro, em que ela terceiriza essa parte. Isso acontece com os esportes mais tradicionais também.

Para entender direitinho as diferenças entre as formas de organização, vale ler o que escreveu Nicholas Bocchi, advogado especializado em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.


 

Já foram explorados os perfis de investimentos feitos em clubes de eSports aqui no Lei em Campo. Cabe agora discutir os modelos de negócios das desenvolvedoras, empresas donas dos jogos.

Não existe uma regra de como as competições de esporte eletrônico funcionam, pois o formato do cenário competitivo de cada modalidade dependerá da abordagem que a desenvolvedora dá à atividade. Os pontos comuns se dão nas vendas dos direitos de transmissão às plataformas e na divisão da receita das transmissões com times e jogadores a título de direito de imagem e de arena.

A venda dos direitos de transmissão raramente é exclusiva, de forma que o organizador do campeonato mantém contratos com várias plataformas de transmissão na internet e na televisão.

Quem são as desenvolvedoras para o ordenamento jurídico

As desenvolvedoras, por serem donas dos jogos, têm o poder de decidir como eles serão utilizados.

Existem empresas que tomam pra si todas as funções de uma entidade de administração do desporto, como organizar o calendário esportivo; administrar as competições e eventos; filiar clubes; e inscrever jogadores. Elas tomam pra si todas as funções de administração do desporto devem, portanto, ser consideradas entidades de administração do desporto, devendo suportar todos os direitos e deveres destinados a essas entidades pela Lei Pelé.

Já outras empresas que terceirizam as funções de uma entidade de administração do desporto, mas mantêm a palavra final, também devem ser consideradas como entidade de administração do desporto.

A figura de uma entidade que detém o poder na modalidade, mas terceiriza a administração das competições, não é nova, estando prevista na legislação a relação entre a entidade de administração do desporto e as ligas. Um exemplo real e atual é a relação entre a Confederação Brasileira de Basketball e o Novo Basquete Brasil.

De modo geral, esses são os dois modelos de negócios que as desenvolvedoras adotam para seu produto esportivo, e serão discutidos mais a fundo a seguir.

Riot Games – intervencionista

O primeiro modelo a ser discutido é o adotado pela Riot Games, detentora dos direitos do jogo League of Legends, o mais popular no Brasil e no mundo. Pode-se atribuir a popularidade e o crescimento do cenário competitivo do jogo ao modelo extremamente intervencionista que a empresa adota. Ela toma todas as funções de uma entidade de administração do desporto, incluindo a organização de competições e a garantia de que o cenário seja saudável.

No Brasil, até o início de 2015, as fontes de renda dos clubes de desporto eletrônico que contavam com times de League of Legends eram os patrocínios e premiações dos campeonatos, que na época eram realizados por várias empresas com concessão da Riot Games.

Em 2015 a Riot reinventou o sistema de ligas. Com oito vagas e um campeonato que se estendia pelo ano, a Riot Games passou a oferecer aos clubes que participariam do campeonato uma espécie de salário para auxiliar nas despesas com jogadores e infraestrutura, além de fornecer uma segurança maior para os times poderem fazer investimentos. A ajuda de custo, entretanto, demandava uma contrapartida do clube, que deveria se submeter a uma série de exigências – por exemplo, firmar o compromisso de participar apenas dos campeonatos organizados pela Riot Games, ou a imposição de limitações como definir quais patrocínios poderiam ou não ser aceitos.

A Riot Games também criou, em 2016, uma segunda divisão e implementou um sistema de promoção e rebaixamento.

Com essas medidas, as premiações dos campeonatos tiveram redução significativa; entretanto, a renda foi distribuída de forma que todos os times pudessem se desenvolver de maneira igualitária e manter a competitividade. Criou-se, portanto, uma estabilidade saudável que impulsionou o crescimento dos clubes e do cenário competitivo no geral.

Esse modelo de administração do desporto apresenta, portanto, características extremamente intervencionistas, retirando grande parte da liberdade dos clubes em troca de estabilidade.

Valve – liberal

A Valve é a publisher detentora dos títulos Counter Strake: Global Offensive e Dota 2, e o sistema de administração do desporto deles é o extremo oposto do praticado pela Riot Games.

A desenvolvedora decidiu focar seus trabalhos no desenvolvimento dos jogos, enquanto outras empresas cuidam de promover os campeonatos e organizam o cenário competitivo. Não existe a prestação de nenhum auxílio direto aos clubes, contudo, por meio de concessões para realizar campeonatos a várias empresas do segmento dos games, o volume de campeonatos durante o ano é muito grande.

Os campeonatos são divididos em duas categorias: minors e majors. Os minors são os campeonatos em que os times – pois não necessariamente são amparados por um clube – menos habilidosos e/ou em ascensão jogam em busca de holofotes para receber investimento, melhorar ainda mais e ingressar nos majors. Os majors são os grandes campeonatos, nos quais se pagam quantias de dinheiro muito altas aos competidores. Dessa forma, as fontes de renda são os patrocínios e premiação dos campeonatos.

Esse modelo funciona muito bem nos países onde o esporte eletrônico já está bem sedimentado, entretanto, promove a estagnação do cenário naqueles que ainda buscam crescer. Um bom exemplo é o próprio Brasil, pois ainda não existe volume relevante de competições para que os clubes consigam manter times com patrocínios e premiações.

Como ainda não há investimento suficiente de empresas interessadas em promover tais campeonatos, o resultado é que todo o cenário brasileiro de DotA 2 e Counter Strike: Global Offense não é sustentável, mesmo com a legião de fãs brasileiros.

Em diversas modalidades que usam esse modelo de negócio, os jogadores brasileiros são extremamente habilidosos, mas essas condições ocasionam ou a desistência ou a exportação de jogadores que têm o sonho de ser atleta dessas modalidades.

Direitos e obrigações de uma entidade de administração do desporto

Tendo definido as desenvolvedoras como entidade de administração do desporto, o passo seguinte é discutir quais são seus direitos e deveres, o que será feito nas próximas semanas aqui no Lei em Campo!

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.