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Lei em Campo

A NFL aprendeu à força com a Justiça. A FIFA deve seguir o mesmo caminho

Andrei Kampff

07/05/2019 04h30

Nesse fim de semana foi Alexandre Pato. Antes, Rodrigo Caio. A lista é grande no Brasil e no mundo. Futebol é esporte de contato, e pancadas na cabeça são frequentes.

Concussão é coisa séria.

Pra quem não sabe, concussão pode ser uma consequência de choques de cabeça. Ela se caracteriza pela presença de sintomas neurológicos sem nenhuma lesão identificada, mas com danos microscópicos, dependendo da situação, reversíveis ou não.

Mesmo assim, o futebol ainda não tem um protocolo de conduta para choques de cabeça.

A FIFA ainda não tomou as decisões necessárias para proteger os atletas desse risco. Além de ser um descaso com quem joga, pode custar caro. 

A NFL, a liga do futebol americano, sentiu exatamente isso, e precisou mudar. E tudo começou por causa de um médico nigeriano.

Dr. Bennet Omalu, médico legista que vivia e trabalhava em Pittsburgh havia 30 anos, não sabia nada do jogo, nem do tamanho do negócio que ele movimentava. Isso até Dr. Omalu se "encontrar" com Mike Webster, num sábado, em setembro de 2002. O detalhe importante é que um dos maiores nomes do esporte americano estava morto.

Nesse momento, a NFL se deparou com um problema que não conseguiria vencer.

Antes de falar desse encontro, da pesquisa que provocou a ira dos chefões da Liga e das consequências para o jogo, é importante reforçar algo sobre o Direito Esportivo e esta seção.

O professor Wladimyr Camargos, colunista do Lei em Campo,  escreveu que a Lex Sportiva não pode ser confundida com a Lei do Esporte. Afinal, esse sistema transacional ultrapassa os limites jurídicos, abrangendo também sociologia, cultura e diálogos, nem sempre tranquilos.

Vamos falar hoje justamente disso. De um diálogo provocado por um médico africano, com cidadania americana, que incomodou os comandantes da NFL, que se negaram a conversar. Mesmo assim, desse quase monólogo surgiram mudanças importantíssimas para a segurança do esporte, muito embora a Liga não admita isso de forma transparente. Tem conversa, tem questionamento às regras, tem conflito, tem mudança. Sim, é caso de Juri-história.

Ao caso. Resumidamente. Em 2002 o médico Bennet Omalu, legista, se deparou com Mike Webster, um ídolo do futebol americano que acabara de morrer com apenas 50 anos. Omalu costumava repetir que se preocupava não com a forma como as pessoas viviam, mas sim como morriam. A hipótese de ataque cardíaco, como se suspeitava, nunca foi recebida por Omalu. Até porque o ex-atleta apresentava um quadro de demência surpreendente nos últimos anos de vida. Ele precisava entender aquela morte.

"Iron Mike" era um "center", a mais violenta das posições do esporte. Ele sofreu uma tempestade incansável de golpes ao logo da carreira. Segundo estimativas, foram mais de 25 mil colisões em campo. Na autópsia, Omalu não abriu mão de analisar o cérebro de Mike, mesmo com a oposição de muita gente. No exame, encontrou uma série de pequenas lesões. O mesmo aconteceu com outras autópsias feitas com ex-jogadores de futebol americano.

O médico concluiu que a doença degenerativa, chamada ETC (encefalopatia traumática crônica), havia sido causada pelos golpes que os atletas receberam na cabeça ao longo da carreira. Ele então passou a apresentar os estudos à NFL, que negou que os danos eram fruto da prática do futebol americano.

A indústria do esporte sempre fez de tudo para manter o ídolo ativo.

Fitas, injeções, Vicodin, lidocaína, a lista é longa. O espetáculo precisava continuar. E um "médico legista africano", que "mal conhecia o esporte", que "nem nos Estados Unidos havia nascido", ousava questionar os procedimentos desse esporte americano, que movimentava fortunas, empregava milhares e investia em projetos sociais. Os executivos do esporte não podiam admitir que o esporte que era empolgante, bonito, apaixonante e rentável poderia ser também perigoso.

Omalu sofreu ameaças, preconceito. Nem sequer conseguia se encontrar com os poderosos da Liga. Mas a NFL se deparou com a pessoa errada a ter descoberto algo tão avassalador. Sabe por quê? Porque Bennet Omalu aprendeu desde sempre, em Nnokwa, no sudeste da Nigéria, onde nasceu, em setembro de 1968, a lutar pelo que acreditava. Seu sobrenome, Omalu, é uma abreviação de "Onyemalukwube", que significa que "se um homem sabe algo, ele deve falar".

Ele não ficaria quieto, apesar de todo o risco.

Para uma publicação científica, três casos seriam suficientes. Ele e seu grupo já tinham quatro. Omalu tinha certeza: "Isso já é muito maior do que a NFL".

Outros estudos deram ainda mais força à tese de Omalu. Em 2014 uma pesquisa da Universidade de Boston identificou que, nas autópsias feitas com 79 jogadores de futebol americano, 76 apresentavam doenças degenerativas causadas por situações de jogo. Outro estudo, de 2015, indicava que um jogador de futebol profissional sofre em média entre 1.000 e 1.500 colisões com outros jogadores ou quedas no campo a cada temporada, algumas chegando a atingir forças sobre o corpo equivalente a levar uma pancada de um carro circulando a 55 km/h.

Isso gerou uma série de processos. Recentemente, a Liga concordou em pagar US$ 1 bilhão em uma ação movida por um grande grupo de ex-jogadores aposentados que alegaram ter o problema diagnosticado por Omalu, devido à prática do esporte.

E mais, a NFL tem mudado regras de segurança no esporte. A lei do esporte está deixando o jogo mais seguro. Ela criou o "Protocolo de Concussão", investiu mais de 100 milhões de dólares para o desenvolvimento de tecnologias e apoio à investigação médica desses casos, ajudou a desenvolver um capacete tecnológico. O jogo tem tido menos colisões perigosas.

A história de Omalu virou filme, com Will Smith no papel do médico, "Um homem entre gigantes". Não há no filme nenhuma batalha jurídica, como também essa não apareceu como de costume por aqui. Isso não tira a descoberta científica de Bennet Omalu do rol das transformações que o esporte sofre a partir das provocações que recebe.

As histórias transformadoras são sempre surpreendentes. Afinal, elas rompem a linha normal dos fatos, exigem um realinhamento cultural e jurídico, estabelecendo uma nova relação entre o esporte e seus operadores. Foi exatamente o que provocou a pesquisa médica de Bennet Omalu.

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Filme "Um homem entre gigantes". Disponível na Netflix, aqui.

 

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.