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Lei em Campo

O porão do Direito Esportivo brasileiro traz manifestações condenáveis

Andrei Kampff

13/05/2019 12h00

Mergulhar na história do Direito Esportivo brasileiro é mergulhar na própria historia da sociedade do Brasil.

Como em todo processo evolutivo, superam-se ideias que com o tempo se tornam cada vez mais obscuras e incompreensíveis.

Mas são essas reflexões, à época necessárias, que propiciam o surgimento de conceitos, de projetos e da própria ciência.

Interpretar o ontem com o que se enxerga hoje é um exercício necessário, mas ele precisa ser feito despido de preconceitos, de radicalismos, sem bandeira na mão.

A história tem seu tempo, suas razões e seus personagens.

Na evolução do Direito Esportivo brasileiro, alguns deles partem de conceitos que hoje são criminosos, mas que à época propiciavam debates necessários.

Manifestações racistas dos criadores dessa ciência no nosso país eram frequentes. Condenáveis hoje e à época.

É o que conta o professor Wladimyr Camargos, especializado em direito esportivo e colunista do Lei em Campo, em mais uma aula sobre a origem dessa ciência no Brasil.

 


 

O porão de João Lyra Filho

O filósofo francês Gaston Bachelard dizia que de uma casa era necessário conhecer do porão ao sótão. Estou propondo a você, fiel leitor, que se atente ao fato de que a partir de agora vamos entrar no porão da construção que deu início ao Direito Esportivo brasileiro. Para tanto, leia a frase abaixo com o assombro que sempre será devido:

"Outra não tem sido a minha diretriz no Rio Grande, onde o que tem feito se assemelha ao direito corporativo promovido pelo regime fascista no período de renovação criadora que a Itália atravessa […] Não será diferente, é claro, na administração da República, se até lá me elevar o voto dos meus concidadãos."

Você tem ideia de quem tenha dado entrevista tão reveladora quanto ao seu pendor ao apoio ao fascismo inaugurado na Itália por Benito Mussolini? Pois trata-se de Getúlio Vargas, em 1929, então Governador do Rio Grande do Sul e candidato a Presidente da República. Está no livro magistral de Lira Neto (Getúlio 1930-1945 – do Governo Provisório À Ditadura do Estado Novo. Livro Eletrônico – Kindle. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pos. 6693-6700).

E a passagem seguinte? De quem é?

"Pois saiba e senhor, que eu, minha família e meus auxiliares não viajamos com essa corja de malandros".

"Mas, senhor Conselheiro, eles são jogadores da nossa seleção". "Futebolistas é sinônimo de vagabundos [sic], e pode escolher imediatamente, senhor Ministro – Ou eles ou eu"."

É daquele jurista que o orador citou na sua formatura, meu caro. Sim, da "Águia de Haia": Ruy Barbosa.

Chocado? Pois quem escreveu tão infeliz e racista colocação, como a que vem abaixo?

"A revelação do desporto não exclui a presença da raça (antropologia física), nem desdenha a influência do MEIO (antropologia social). Há povos aptos, acima de outros, a resultados mais convincentes em determinadas provas desportivas. Há raças que mais favoravelmente atuam, inclusive sob pressão, e não apenas condicionadas à influência do MEIO, nesse ou naquele gênero de competição desportiva. O futebol faz a prova do julgado. O atletismo, igualmente. O pugilismo, inclusive. Não é difícil observar-se a extensão desta verdade no cotejo dos resultados do maior número de provas desportivas. Veja-se que tipos preponderam nas provas de xadrez, ou nos torneios de natação, ou nas provas hípicas, ou nas regatas a vela, ou nas lutas de pugilismo, ou nos jogos de tênis. Veja-se a capoeiragem."

Desculpem a revelação, mas foi nosso patrono do Direito Esportivo brasileiro. Sim, João Lyra Filho. E logo no introito de seu livro mais importante: "Introdução ao Direito Desportivo", de 1952.

Entretanto, chamo a atenção do querido e ruborizado leitor para uma necessária reflexão. Assim como Monteiro Lobato não pode ser lido somente a partir de suas incontestáveis passagens racistas, também não se pode reduzir Getúlio Vargas, Ruy Barbosa e sequer João Lyra Filho a essas infelizes citações.

Não! Não estou propondo uma relativização de seus erros, mas seria por demais reducionista imaginá-los tão somente à luz dessas revelações. Todos se apequenaram ali, porém são ainda enormes tão quanto suas obras.

Bom, já sabendo que Getúlio Vargas e João Lyra Filho trabalharam juntos no Estado Novo em matéria esportiva, haveria um fio condutor que os unisse em termos filosóficos? Sim, há, e para que se entenda o que quero dizer, permita que eu peça que leia o que segue:

"Três tendências revelei então na evolução da sociedade, na evolução da raça e na evolução das instituições políticas – e estas tendências persistem e continuam a se acentuar cada vez mais; socialmente – a tendência da população no sentido do oeste, para os platôs centrais; etnicamente – o aumento da massa ariana e a arianização progressiva dos grupos miscigêneos; politicamente – a marcha para a centralização político-administrativa, a crescente hegemonia da União."

Quem está pedindo nesta passagem a arianização, o clareamento da pele dos brasileiros, é um dos mais importantes sociólogos e juristas brasileiros do século passado: Oliveira Vianna. Ele escreveu o que que lemos acima em: OLIVEIRA VIANNA, Francisco José. Evolução do Povo Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 9.

Reverberando tão absurda tese, um jovem Deputado Federal chamado Getúlio Vargas, já bastante influenciado por seu guru eugenista, fez este discurso em 1925, na Câmara dos Deputados, portanto somente 5 anos antes de assumir a liderança de nosso país:

"Ninguém melhor que Oliveira Viana, cujas idéias compendiamos em algumas destas sugestões, com a esclarecida visão do sociólogo, apreendeu a evolução do povo brasileiro. Fracassaram as generalizações apressadas da sociologia, pretendendo aplicar as leis gerais da evolução, como um paradigma que todos os povos tivessem de seguir, na sua marcha. Esqueceram-se que a ação modeladora do meio cósmico, da composição étnica e dos fatores externos tinham que variar o processo do seu desenvolvimento, que sofre avanços e recuos, desvios e contramarchas, conforme a atuação preponderante desses agentes. Foi preciso que sobreviesse a plêiade brilhantíssima dos discípulos da Escola de Le Play, para, no estudo pormenorizado dos pequenos núcleos sociais, apanhar toda a infinita variedade da vida."

E é justamente neste ideólogo conservador, racista, porém extremamente culto e autor de obra complexa e até hoje estudada, em quem João Lyra Filho se baseia desde as primeiras linhas do seu "Introdução ao Direito Desportivo".

Aguarde que passarei a analisar isso mais detidamente na próxima coluna.

 

 

 

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.