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Lei em Campo

Queriam tirar Pelé e Garrincha da Copa de 58. Um teimoso não aceitou

Andrei Kampff

15/05/2019 16h00

A cor não é preferência. É preconceito. Preconceito que não poupa nem o democrático futebol.

Culpar alguém de algo por algo que ele carrega pelas raízes que tem. É não entender o encanto das diferenças. É punir sem pena, sem alma, sem lógica.

O desserviço à sociedade já provocou muitas vítimas.  No futebol nem se fala… Exemplos ainda estão por aí.

Em 1958 escapamos por pouco. A tentativa de crime existiu. Mas algum teimoso desrespeitou a ordem dada e mandou Garrincha e Pelé para a Suécia.

Essa é mais uma bela história contada por Danielle Maiolini, advogada especializada em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.

 


 

Pelé e Garrincha foram vetados da seleção

Em uma publicação de 1957, a revista France Football soltava uma nota impiedosa: "Sendo um artista, e não um atleta, o jogador brasileiro apaixona-se de tal forma por sua arte que se deixa dominar por ela. Tem nervos sensíveis, é um temperamental, um imaturo, um soldado psicologicamente despreparado para a guerra".

Não era a primeira vez que alguém comparava as quatro linhas às trincheiras. Também não era novidade que os jogadores brasileiros fossem apontados como vulneráveis, inseguros e insubordinados. Não todos. Os negros.

Desde a final da Copa do Mundo de 50, a tragédia com o Uruguai em pleno Maracanã recairia sobre os ombros de três deles. Bigode, que fora atropelado pelo uruguaio Obdúlio Varela; Juvenal, por não cobrir o Bigode; e Barbosa, que, condenado à pena perpétua pelo Maracanazo, anos depois, ainda se lembraria do silencio ensurdecedor daquelas 200 mil pessoas, ecoando entre as traves quando Gigghia marcava aos 34 do segundo tempo. O Brasil chorava, e a culpa tinha cor.

Dizem que, muito tempo depois, o Barbosa chegou queimar uma das traves daquele Maracanã. Como se o fogo pudesse fazer justiça, reduzindo tudo a cinzas. Esquecer dos que o acusavam. Sobre isso, gostava de dizer Mário Filho que, quando o faziam, acusavam a si mesmos. Isso porque, algumas décadas antes, intelectuais atribuíam à miscigenação um novo valor.

Como se nos falhasse lembrar da própria história, ou como se quiséssemos esconde-la, diríamos que, naquele momento, se acabava o preconceito. Com a ponta de uma caneta, do dia pra noite, e como se isso fosse possível, o que era vergonha, haveria de ser orgulho. Onde havia democracia racial, diríamos, não havia mais negros, brancos ou índios. Éramos todos o povo brasileiro. Enormes na nossa singularidade. A menos que nos acusássemos.

Assim, aqui e ali, a participação dos negros no futebol (e na vida) era, aos poucos, autorizada. E como quem concede a benesse pode vez ou outra mudar de ideia, seria também contestada. Bastava um deslize. Culpa do negro. A miscigenação celebrada, até a página dois. Enquanto o negro ajudasse a ganhar.

Contam que em 54, na eliminação da Copa da Suíça, foi a mesma coisa. O "desequilíbrio emocional" culpado pela cor. Por isso, em 58, um relatório encomendado pelo então presidente da CBD, João Havelange, cravou que um sem-número entre negros e miscigenados não apresentava as condições necessárias para defender o Brasil na Copa da Suécia.

Garrincha e Pelé, vetados pelo psicólogo da seleção. Segundo diagnosticara, a origem humilde e racial era indicativo de que os fiascos ocorridos nas Copas anteriores poderiam se repetir nos pés dos que considerara pouco instruídos, e sem maturidade. Alguém desobedeceu. Ainda bem. Pelé e Garrincha entraram pra história, e do psicólogo não me lembro o nome.

 

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Referências bibliográficas

FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003

ROSSI, Jones; MENDES JÚNIOR, Leonardo. Guia Politicamente Incorreto do Futebol. São Paulo: LeYa, 2014.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.