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Lei em Campo

Os problemas saíram da Toca

Andrei Kampff

28/05/2019 11h00

Já escrevi, mas vou reforçar. Eu vi, li e reli. Conversei com pessoas. Ouvi comentários. A sensação é de incredulidade.

É inconcebível, inimaginável, maluco, que uma gestão de um clube profissional de futebol, ainda mais com um departamento jurídico grande como o do Cruzeiro, aja de maneira tão irresponsável e, repito, se confirmarem as denúncias, criminosa.

As investigações devem levar a diferentes caminhos jurídicos, na Justiça comum e esportiva. Dirigentes podem ser responsabilizados. E, pior, o clube punido, inclusive com rebaixamento.

Para não pegar pesado, há deslizes financeiros, criminais, desportivos e éticos nas denúncias.

Enquanto não houver lei que puna corrupção privada no Brasil (há um PL que está para ser votado no Senado. P.S.: ajude a pressionar, a fazer com que ele seja analisado, votado e aprovado, para o bem do esporte brasileiro), os clubes precisam se proteger internamente de gestões irresponsáveis.

Repito: clubes precisam se proteger.

Tem como? Sim, com mecanismos internos de proteção, estatuto bem feito e códigos de conduta.

É o que conta Nilo Patussi, advogado especializado em gestão esportiva e colunista do Lei em Campo.

 


 

A gestão de Wagner Pires de Sá, presidente do Cruzeiro Esporte Clube, acabou de completar um ano à frente do clube mineiro e já está com problemas para explicar uma série de denúncias noticiadas no último domingo pelo programa Fantástico, da TV Globo.

A reportagem apresentou inúmeras irregularidades que a atual gestão vem cometendo, tais como pagamentos suspeitos, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.

Mesmo após anunciar, em abril deste ano, a implementação de um programa de compliance com o intuito de demostrar o seu comprometimento com a verdade e a transparência, em conformidade com os compromissos da instituição, a administração de Wagner Pires de Sá parece não estar conseguindo provar que segue as regras internas, legais ou éticas.

Financeiro

O Conselho Fiscal de uma instituição tem o papel de analisar e fiscalizar a questão financeira de forma independente, para garantir a saúde do estabelecimento e de seus interesses. Explico um pouco melhor tal importância no artigo Os fiscais da verdade.

Dessa forma, o compromisso que o conselho tem com o clube é importantíssimo, e, por isso, a cobrança dos conselheiro também precisa ser.

No primeiro ano da atual gestão, três do conselheiros do clube renunciaram ao cargo no Conselho Fiscal depois de falharem na devida prestação de contas. Os demais conselheiros fiscais viram a dívida do clube aumentar de R$ 136 milhões para R$ 384 milhões e para R$ 520 milhões, respectivamente. Segundo eles, as dívidas do clube atingiram níveis impagáveis.

Vale ressaltar que os números de 2018 seriam ainda piores se não houvesse mais uma irregularidade fiscal, qual seja, o lançamento dos valores oriundos da venda do jogador Arrascaeta ao Flamengo, que ocorreu em 2019. O clube mineiro declarou a entrada desses recursos no balanço do ano anterior. Uma espécie de pelada fiscal.

Diante da péssima situação financeira que se apresentava, o clube, em 11 de fevereiro de 2019, quase que com a unanimidade de seus conselheiros, aprovou um empréstimo de R$300 milhões de um grupo estrangeiro. Entretanto, segundo denúncias dos conselheiros que se recusaram a apoiar o empréstimo, o Cruzeiro teria presenteado e bajulado o Conselho para que esse apoio necessário fosse possível.

Criminais

A polícia civil de Minas Gerais investiga negociações do Cruzeiro com empresas e empresários de origem duvidosa, além das denúncias dos crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e de documentos particulares.

Por falta de regulamentação na legislação nacional, corrupção privada ainda não é crime no Brasil. Entretanto, vale lembrar que já existe em tramitação no Senado o Projeto de Lei nº 68, que prevê como crime a corrupção privada praticada por gestores do esporte. O PL revolucionará a legislação esportiva e cobrará mais comprometimento e transparência dos administradores dos clubes e entidades de administração. Mais sobre o PL 68, cujo relator é o professor Wladimyr Camargos, no artigo do Euler Barbosa A nova Lei Geral do Esporte.

Desportivos

A Constituição Federal atribuiu à administração do desporto autonomia para legislar e julgar casos que envolvam direitos esportivos. É o que prevê o artigo 217 da Carta Magna. Com isso, as regras da FIFA e da CBF são leis que, em caso de descumprimento, precisam ser analisadas, processadas e julgadas com o intuito de dar uma satisfação à sociedade e ao mundo esportivo.

Por conta disso, ao negociar direitos do menor Estevão, de apenas 11 anos, há uma dupla irregularidade. Em primeiro plano, o compromisso não profissional, ou seja, aquele de formação com a entidade de prática esportiva, só é firmado a partir dos 14 anos de idade. Em segundo plano, o artigo 29, §4º, da Lei Pelé estabelece que a vinculação poderá ser profissional por meio do contrato especial de trabalho desportivo a partir de 16 anos.

Com a finalidade de barrar empresários despreparados, os órgãos de administração do esporte criaram regras que visam a segurança dos atletas nas relações profissionais: credenciar e regulamentar a atividade do intermediário de atletas de futebol, ou, como era chamado antigamente, o agente de jogadores.

O outro ponto falho do clube mineiro foi negociar não apenas no caso do menor Estevão, mas também de outros dez jogadores com empresários que não se encontravam regularmente inscritos nos quadros da CBF.

Éticos

O conjunto de atos apresentados e investigados mostra uma falha gigante no programa de integridade que o clube vem implementando.

É inverossímil a alta administração assumir um papel de transparência e comprometimento com as regras de compliance concomitantemente com a falha em fornecer aos seus conselheiros fiscais os documentos de movimentações financeiras.

A sistematização dos esquemas irregulares entre a administração da instituição e alguns de seus conselheiros apresentou descomprometimento não só com a instituição Cruzeiro, mas também com seus sócios, colaboradores, torcedores e atletas, inclusive os das categorias de base.

O Cruzeiro Esporte Clube tem apresentado um futebol organizado, com profissionais competentes e, principalmente, vitorioso nesses últimos anos. Mas, infelizmente, enquanto fora das quatro linhas, os problemas não param de manchar sua credibilidade.

Em nota, o presidente do clube se defende ao dizer que as informações são baseadas em perseguição política por um pequeno grupo de conselheiros, com o seguinte texto: "Em nome da transparência e da lisura que o Cruzeiro merece ser tratado e nossa torcida merece ser informada, decidimos nos manifestar de forma imediata". Porém, o que se vê nas redes sociais e veículos de comunicação parecer ser muito mais que apenas um embate político.

É extremamente importante que essa situação se esclareça o quanto antes, pois o abalo que a imagem do clube mineiro pode sentir pode não só atrapalhar ainda mais as finanças do clube com a perda de patrocinadores que não queiram ter as suas marcas envolvidas em escândalos, torcedores que comecem a ter a sua torcida como mais um adversário, como também no que parece ser o único acerto da atual gestão, o time, que tem entrado em campo e correspondido às expectativas.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.