Topo

Lei em Campo

Mesmo com mortes e suicídio de operários no Japão, COI não deve ser punido

Andrei Kampff

29/05/2019 05h15

Cada país tem suas leis. E a legislação trabalhista muda muito de um país para o outro. O que não pode em determinado lugar, pode noutro.

Quando se realiza um evento global, como Olimpíada e Copa, o mundo observa de perto o que acontece no país sede. Muitas vezes o que se enxerga choca, mesmo não sendo ilegal.

É o que está acontecendo no Japão. Operários que levantam as sedes dos Jogos Olímpicos de 2020 estão sobrecarregados, física e emocionalmente. Já houve morte, além de muitas denúncias de violação a Direitos Humanos.

O que acontece agora no Japão pode ser comparado ao que acontece no Catar. O país sede da Copa de 2022 sofreu inúmeras denúncias de maus-tratos aos operários que levantavam os estádios. A FIFA não foi punida pela Justiça, mas, após uma pressão da opinião pública, de patrocinadores e de organizações internacionais, ela estabeleceu uma política de Direitos Humanos, e o país mudou a legislação trabalhista local.

Mas será que o Comitê Olímpico Internacional pode ser responsabilizado por abusos cometidos na construção dos locais para os jogos, e até pela morte dos operários?

Zeca Cardoso conversou com especialistas.

 


 

O relatório da Federação Internacional de Trabalhadores da Construção e da Madeira (BWI, sigla em inglês), divulgado na última semana, alerta para um problema grave: existe uma imposição da "cultura do medo" nos operários responsáveis pelas construções das sedes para os Jogos Olímpicos Tóquio-2020.

Segundo o relatório, os trabalhadores enfrentam longas jornadas, medidas de segurança pouco eficientes e escassa proteção legal. A situação é parecida com o ocorrido no Catar, sede da Copa do Mundo de Futebol, em 2022. Após inúmeras denúncias, a Fifa aprovou a Política de Direitos Humanos, em 2017.

"O Comitê Olímpico Internacional (COI) tem uma política próxima do que existe na Fifa, e foi instaurada recentemente. Inclusive, a 'Agenda 20+20' prevê um diferente tipo de conduta", explica Vinicius Calixto, advogado especialista em Direitos Humanos e autor do livro  "Lex Sportiva e Direitos Humanos: Entrelaçamentos Transconstitucionais e Aprendizados Recíprocos".

A "Agenda 20+20" foi instaurada em 2014 e visava alterar diversas condutas nas Olimpíadas que passam por desde mudanças no combate à corrupção dentro do COI, na relação entre os atores envolvidos com mais direitos aos atletas e igualdade de gênero, até o agigantamento dos Jogos Olímpicos, empoderamento dos atletas, entre outros.

A atuação do COI com essa nova agenda, inclusive, já aconteceu no Japão. "Um caso interessante é em relação ao clube de golfe que sediará as competições da modalidade. Eles não aceitavam mulheres, e o Comitê teve que atuar e pressionar para que fossem aceitas mulheres para os Jogos serem realizados", relata Calixto.

O clube Kasumigaseki Country Club será a sede dos jogos de golfe. Na política de associados, as mulheres são autorizadas a praticar a modalidade de segunda a sábado, mas são vetadas aos domingos. Durante as competições olímpicas, o acesso será liberado, já que o controle é do COI e existem disputas masculinas e femininas.

No âmbito trabalhista, o COI poderia ser responsabilizado por problemas relacionados aos operários, como afirma o advogado Vinícius Loureiro. "Estamos tratando de um sistema trabalhista totalmente diferente do nosso. Lá, por exemplo, não há limitação expressa do número de horas extras que pode ser trabalhado por cada empregado. Não é apenas nas obras dos Jogos Olímpicos que se observa esse comportamento de excesso de trabalho."

Segundo o relatório apresentado pelo BWI ao COI, pelo menos duas mortes por trabalhadores responsáveis por construções de equipamentos olímpicos foram causadas por trabalho excessivo.

"O 'karoshi', que é a morte por excesso de trabalho, é amplamente difundido e conhecido. Anualmente, segundo os dados oficiais, cerca de 200 pessoas morrem no Japão por excesso de trabalho. Extraoficialmente, no entanto, esse número é muito maior. E isso ocorre mesmo sem que haja descumprimento das leis trabalhistas locais", esclarece Loureiro.

Das duas mortes relatadas, uma foi em virtude de um acidente de trabalho, e outra em função de um suicídio cometido por um funcionário após fazer mais de 200 horas extras no mês. Os depoimentos de funcionários relatam que eram obrigados a trabalhar por 28 dias sem folgas e destacam o alto número de acidentes de trabalho fatais no Japão.

O secretário-geral Ambet Yuson declarou que os salários são baixos, o excesso de trabalho é muito comum e o acesso para fazer reclamações é escasso. "O Jogos Olímpicos Tóquio-2020 eram uma oportunidade para o país buscar uma mudança necessária há muito tempo na legislação trabalhista, no entanto, os problemas só pioraram."

Para Vinícius Loureiro, pouco pode se fazer, já que não está sendo desrespeitada nenhuma legislação trabalhista local. "Ainda que exista uma mobilização da comunidade internacional, provavelmente o maior impacto que será sofrido pelo COI é o da imagem. É semelhante ao impacto que as grandes marcas de moda sofrem em casos de costureiras trabalhando em regime análogo ao escravo. Se as leis locais estão sendo cumpridas, pouco poderá ser feito."

Por Zeca Cardoso

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.