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Lei em Campo

Para promotor, Cruzeiro evitaria denúncias se não pressionasse a Justiça

Andrei Kampff

02/06/2019 13h00

Não é exclusividade do Cruzeiro.

Recentemente o Internacional deu um exemplo corajoso, e cortou a própria pele. Numa sessão histórica, o Conselho Deliberativo, depois de investigação interna, votou, condenou e baniu  ex-dirigentes do quadro do clube, entre eles, o ex-presidente Vitório Piffero. Eles foram condenados por gestão temerária e desvio de recursos. O caso está com o Ministério Público.

Mas são muitos os clubes brasileiros envolvidos em denúncias de corrupção privada. Poucos repetem o exemplo do Internacional e punem com rigor internamente. Esperar pelo MP não é, ainda, a melhor solução.

Simples de entender. Corrupção privada não é crime no Brasil. Mas isso pode e deve mudar. Projeto de Lei Geral do Esporte no Senado tipifica essa conduta. Esse projeto de lei precisa ser analisado urgentemente pelo Congresso.

E, por incrível que pareça, gritamos, grafamos em caixa alta em nossas redes sociais, falamos em bares ou em programas de debate nos veículos de comunicação, sobre a necessidade de uma gestão mais séria no esporte, e ninguém, ou quase ninguém, cobra dos nossos políticos a discussão sobre esse projeto de lei que esta parado.

E, cedo ou tarde, a fatura vem.

O próprio Cruzeiro já passou por denúncias de corrupção interna que pararam no MP sob a alegação de que ele não poderia investigar clubes e federações por se tratarem de entidades privadas. 

Ou seja, lá atrás o clube poderia ter evitado o que acontece agora.

É o que conta Thiago Braga.


 

 

 

A crise pela qual o Cruzeiro passou na última semana poderia ter sido evitada se, na década passada, investigações envolvendo o clube mineiro não tivessem sido encerradas por conta de pressão política. Entre as denúncias apresentadas pelo "Fantástico", está cessão de 20% dos direitos econômicos de Antônio Estevão, o Messinho, de 11 anos, para o empresário Cristiano Richard. O clube alega que apenas deu a parte como garantia para um empréstimo. Mas pode sofrer sérias sanções e inclusive ser rebaixado por isso.

"Todo mundo que conhece o Itair [Machado, vice de futebol do Cruzeiro] não se surpreendeu. A surpresa foi negociar os direitos de um menino de 11 anos. O grande prejuízo para o Cruzeiro foi ter trancado a investigação em 2004. Essa decisão não fortaleceu o clube contra essas práticas", afirma o promotor Eduardo Nepomuceno em entrevista para o Lei em Campo.

Para entender a força política que o Cruzeiro tinha no judiciário mineiro é preciso voltar até 2003, época em que Nepomuceno assumiu a titularidade da 17ª Promotoria de Justiça de Belo Horizonte, promotoria que atua na área de defesa do patrimônio público na capital mineira. Foi aí que começaram os embates entre Nepomuceno e grandes figuras da política do estado, entre elas Zezé Perrella, então ex-presidente do Cruzeiro e irmão de Alvimar Perrella, o mandatário cruzeirense na ocasião.

No início dos anos 2000, o Cruzeiro firmou parcerias que renderam a injeção de dinheiro nos cofres do clube, além de se notabilizar por ser um grande revelador e vendedor de jogadores. Uma destas transferências, a do zagueiro Luisão, rendeu a Perrella a investigação por lavagem de dinheiro, conduzida por Nepomuceno.

Ao chegar para depor sobre o caso, Perrella estava acompanhado de cinco conselheiros do Cruzeiro, todos desembargadores. "Foi a maneira que ele teve para mostrar força e tentar intimidar. O MP não deveria ter aceitado o argumento deles de que a promotoria não poderia investigar clubes e federações por se tratarem de entidades privadas. Menos de um mês depois a investigação foi trancada", lamenta Nepomuceno, citando um argumento comum entre os cartolas para barrar as investigações de corrupção.

Por conta das denúncia da TV Globo, a Polícia Civil abriu inquérito contra o clube. Para Nepomuceno, o passo mais importante agora é garantir que o caso seja investigado de maneira idônea e pela melhor equipe possível.

"Tem de tudo um pouco. Indício de fraude contábil, lavagem de dinheiro, estelionato e até organização criminosa. Precisamos saber para qual promotoria a investigação será remetida. O ideal é que essa investigação seja conduzida por uma promotoria especializada, para ter uma investigação mais qualificada. O Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) poderia investigar, por exemplo. No plano da Fifa, da CBF, tudo indica que o clube será punido", analisa o promotor.

Um dos casos que vieram à tona já na esteira da primeira leva de denúncias foi a multa rescisória de Itair Machado. No valor de R$ 3,3 milhões, ela é unilateral, só será paga se o clube demitir o vice de futebol. Se Itair optar por deixar o cargo, não precisa depositar a quantia nos cofres do clube.

"É possível que tenham de ressarcir o clube sim. O clube, aliás, poderia buscar a reparação. Tentar anular a cláusula de rescisão do contrato do Itair, mostrar que é uma cláusula nula. É uma solução que o Cruzeiro daria para seus associados e para a sociedade", explica o promotor.

Um fator pode ser preponderante para que essa investigação contra o Cruzeiro renda mais frutos do que os processos instaurados por Nepomuceno na década passada. Ao contrário do que aconteceu naquela época, Aécio Neves não é mais governador de Minas Gerais e Zezé Perrella não comanda o Cruzeiro, hoje é apenas presidente do Conselho Deliberativo celeste. Nepomuceno relativiza a saída de cena dos dois políticos.

"Os clubes de um modo geral têm fortes relações políticas. Basta ver que o prefeito de Belo Horizonte [Alexandre Kalil] é ex-presidente do Atlético-MG. O cenário hoje é diferente. Embora o Zezé não seja mais o presidente do clube, e o Aécio Neves não seja mais governador, o Aécio ainda tem bastante prestígio em Minas. Não quer dizer que não vá haver pressão na investigação", pondera Nepomuceno.

Ter batido de frente com políticos poderosos por tanto tempo rendeu um dissabor dolorido para o promotor. Em 2017, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) afastou Nepomuceno da promotoria por julgar procedente algumas reclamações disciplinares de seus desafetos, entre eles Zezé Perrella, que foi pessoalmente à corregedoria do CNMP para reclamar da atuação de Nepomuceno. Em discurso feito por Perrella quando era senador na tribuna do Senado, Perrella afirmou "ter sofrido supostas arbitrariedades e perseguição pessoal", por parte de Nepomuceno.

Em abril do ano passado, a juíza Vânila Cardoso André de Moraes, da 18ª Vara do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), determinou que Nepomuceno voltasse a ocupar o cargo na promotoria, por considerar desproporcional a punição estabelecida pelo CNMP.

Porém, um dia antes de assumir como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro do ano passado, Antonio Dias Toffoli revogou a decisão que reconduzia Nepomuceno à promotoria de Defesa do Patrimônio Público. Assim, Nepomuceno foi novamente afastado do cargo.

Após ter sido reconduzido à promotoria, mesmo que por um curto período de tempo, Nepomuceno mostrou que não se dobraria à intimidação perpetrada pelos poderosos políticos mineiros e determinou a reabertura do inquérito sobre a construção do aeroporto de Cláudio, a 140 km de Belo Horizonte, construído em 2010 no terreno da família do então governador Aécio Neves. Toffoli sustentou que o afastamento de Eduardo Nepomuceno pelo Conselho foi baseado no suposto descumprimento de deveres no MP, entre eles paralisação e atraso no andamento de inquéritos civis, falta de racionalidade na condução de procedimentos de investigação, tardio declínio de atribuições ao MPF, violação de sigilo judicial em processo envolvendo a Fecomércio e tentativa de burla de garantias asseguradas a Conselheiros do Tribunal de Contas e da usurpação de atribuições de outros órgãos de execução do MP.

"É a procuradoria na qual eu me especializei. Sei que perdi muito, mas é hora de olhar para frente", diz um Nepomuceno agora resignado em cuidar dos casos de homicídio no Tribunal do Júri.

Torcedor do Atlético-MG, frequentemente Nepomuceno é apontado como clubista na hora de abrir investigações contra o Cruzeiro. Mas ele não escolhe adversários na hora de apurar denúncias de corrupção e já abriu quatro processos contra o Galo. E lembra que os atleticanos também fizeram pressão contra a promotoria.

"Essa crítica é tão sem fundamento. Se eu me pautasse por isso, nunca nem deveria exercer a minha função de promotor. É um argumento rasteiro. A única investigação que eles nunca trancaram foi contra o Ziza Valadares porque queriam derrubá-lo", recorda Nepomuceno, citando a administração do ex-presidente do Atlético-MG, que renunciou ao cargo.

Hoje, no Brasil, o crime de corrupção privada é difícil de ser comprovado. No esporte, tudo pode mudar se a Lei Geral do Esporte for aprovada. O artigo 215 da lei, que tramita no Senado, prevê "reclusão de um a quatro anos e multa" para o crime de corrupção privada no esporte.

Por Thiago Braga

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.