Topo

Lei em Campo

Feitiço, um artilheiro assustado quando precisava das mãos

Andrei Kampff

19/06/2019 12h00

Era Luis Macedo Matoso,  ficou sendo Feitiço.

Foi atacante do Santos, São Bento, Corinthians e do Palmeiras, no início do Século XX. Nasceu em 1901, mas só aos 16 anos, depois de trocar a bocha pelo futebol começou a escrever uma biografia das mais interessantes. 

Nos anos 20, sua fama corria de boca em boca. O chute de bico e as cabeçadas fulminantes o aproximaram do gol. A facilidade na arte de balançar as redes lhe deu o epíteto de artilheiro, o primeiro assim chamado no Brasil. 

Artilheiro e corajoso. Em novembro de 1927, foi disputado o Campeonato Brasileiro de Seleções. A final foi entre São Paulo e Rio de Janeiro. Jogo um a um quando o árbitro marca pênalti para os cariocas. Começou a confusão.

O presidente da república, Washington Luis, que assistia das tribunas, ordenou que a partida fosse reiniciada. Um mensageiro foi até o campo e passou a ordem para os jogadores. Feitiço, irritado, mandou outra mensagem: "Diga ao presidente que ele manda no país. Na seleção paulista mandamos nós".

Ele foi suspenso pela Associação Paulista de Esportes Amadores.

Feitiço era assim, corajoso no jogo. Mas assustado quando precisava usar as mãos.

Quem conta mais essa fascinante história do futebol é a Danielle Maiolini, advogada especializada em direito esportivo e colunista do Lei em Campo. 

 

 


 

O caso do Feitiço 

Contam que, quando acharam o Pascoal jogando na várzea, não quiseram saber de mais nada. Levaram pro Rio de Janeiro, e preencheram a papelada pra colocar ele na Liga. Foi aí que ele avisou. Com o pé, podia fazer de um tudo. O problema era a mão. Não sabia escrever. Na verdade, nem ler. Não que fossem precisar desses pormenores durante o jogo. Longe disso. E na vida, bom, ser analfabeto era problema dele. O clube que não tinha nada que ver com isso. Quer dizer, mais ou menos. A questão é que aquela papelada da Liga ele não podia assinar. E precisava. Na hora do jogo, a mesma coisa. Quando juiz trazia a súmula, quem não assinava, não jogava. E aí, começava o martírio. Tinha jogo que perigava não começar, de tanto suor pra desenhar aquelas letrinhas. Foi preciso arrumar um professor pro Pascoal, e pra quase todo mundo que vinha da várzea com ele. Isso que dava abrir o futebol pra quem quisesse. Na época em que a Liga abriu o futebol pros negros e operários, era o que mais se ouvia. Como se se esquecessem que, tamanha a qualidade, não sobrava um grande clube sem querer qualquer deles no time.

 

Pra tentar resolver, contam que, durante a semana, além dos treinos, acostumavam o sujeito a desenhar o próprio nome. Todo dia. Depois de suar entre as balizas naquele sol de rachar, era hora de decorar as letras, uma a uma. Não precisava ensinar de tudo. Só o nome. O primeiro e o último. Já tava bom. Primeiro a lápis, e depois à caneta, como tinha que ficar lá na hora. Contam também que, pra ajudar, às vezes, era preciso alguém escrever no papel o nome bem fraquinho, pro marmanjo rabiscar por cima. Faziam isso no vestiário, claro. Sem ninguém ver. Depois era a vez de ele repetir sozinho, na frente do juiz. Com a caneta. Com todo mundo vendo. Era aí que dava problema. Muita gente olhando, esperando pro jogo começar. Não é qualquer um que aguenta a pressão. E a súmula era uma só. Uma vez tiveram uma ideia genial, que pegou. Pra simplificar, o Pascoal mesmo, que tinha o sobrenome Cinelli, virou Silva. Igual a ele, outros vários. Cruz, Souza, Santos. Teve de tudo pra evitar a fadiga da assinatura.

 

De todos os casos, acho que o do Feitiço era o mais impressionante. Como quase todo mundo que veio da várzea, o Feitiço tinha dificuldade com as letras. Mesmo assim, fazia de um tudo. Com as orientações do treinador só de ouvir de boca, e de achar que era assim que era. Ninguém ligava muito pra essas coisas. O que impressionava era mudança que sucedia com ele quando era chegada a hora de rubricar o papel. O Feitiço só era o Feitiço dentro de campo. Lá, onde quem mandava era ele. Onde, uma vez, depois de marcar quatro gols contra os escoceses, apelidaram ele de Imperador do Futebol. Isso, da linha pra dentro.

 

Quem via ele na beirada do campo pra assinar a súmula não acreditava. Cabeça baixa, só olhava pro homem de preto depois que ele lhe recolhia a caneta da mão. Ali o Feitiço era o Luis Macedo Matoso. De tanto medo, conta o Mário Filho que, naqueles cinco minutos, quem tremia a mão era "um mulato humilde, de cabeça baixa pela vergonha de não saber assinar o nome direito". Difícil acreditar que ocupavam o mesmo corpo, o Luis e o Feitiço. Lá dentro, debaixo da mesma pele, dividindo a coordenação das mesmas pernas. Separados pelo que sabiam e o pelo que não sabiam. Sendo, ao mesmo tempo, imperador e vassalo.

 

 

Referência

FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.