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Lei em Campo

Abuso de menor: entidades esportivas precisam assumir responsabilidade

Andrei Kampff

20/06/2019 18h20

A realidade é triste, e condenável: a maioria das entidades esportivas que trabalham com crianças e adolescentes no Brasil não tem um programa específico de atendimento e aconselhamento para atletas de base, que ajude na conscientização, denúncia e combate a crimes de assédio e violência sexual.

Existem dispositivos legais para se punir esse tipo de crime. A Lei Joanna Maranhão e a Lei Pelé avançaram nessa questão. Mas a prevenção é sempre o caminho mais saudável. As entidades esportivas, como clubes e federações, precisam agir.

O discurso de que a responsabilidade de combater esse tipo de crime é do Estado me parece mais um dos exemplos da falta de responsabilidade social de nossos gestores. O esporte de formação pode até ser um negócio, mas ele não pode deixar de assumir compromissos necessários quando se lida com crianças e adolescentes.

O princípio da autonomia esportiva não pode jamais ser usado como escudo para se eximir de ações objetivas.

Existem projetos importantes no Congresso que precisam ser levados adiante. Eles tratam de questões fundamentais, como registro obrigatório de clubes e escolinhas em conselhos tutelares e exigência dos formadores de certidão negativa de antecedentes criminais dos profissionais que trabalham diretamente com as crianças e adolescentes.

Acredite, muitos clubes nem sequer têm ouvidoria exclusiva para atletas, o que ajudaria bastante a enfrentar essa realidade brutal. São centenas de denúncias todos os anos. 

O Comitê Olímpico Brasileiro tem enfrentado a questão e virou referência no mundo, com ouvidoria e outras políticas que ajudam a combater o problema. Já a Confederação Brasileira de Futebol não tem cumprido nem sequer com aquilo que assumiu publicamente.

Em 2017 a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados promoveu audiência pública para debater esse problema no futebol brasileiro. Na ocasião foi dito que a CBF deixou de cumprir pacto firmado em 2014 com a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A entidade máxima do futebol brasileiro se comprometeu a cumprir dez medidas para evitar abusos a atletas das categorias de base e escolinhas. Ela cumpriu parcialmente apenas dois dos compromissos assumidos.

A CBF expede o "certificado de clube formador", mas não é capaz de exigir dos clubes compromissos com uma política de combate ao assédio e efetiva assistência ao menor?

A Ivana Negrão conversou com especialistas sobre o assunto e conta o que está sendo feito para combater esse problema no Brasil.

 


 

O combate ao assédio no esporte e o papel das entidades

A Lei Pelé, número 9.615/98, que institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências, foi alterada em novembro de 2018, após a Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados aprovar proposta que exigia a adoção de medidas de proteção a crianças e adolescentes contra violência sexual como condição para que entidades esportivas recebam recursos de órgãos da administração pública direta ou indireta.

Entre as medidas exigidas estão o apoio a campanhas educativas, a qualificação dos profissionais que atuam no treino de crianças e adolescentes e a instituição de ouvidoria para receber denúncias de maus-tratos e de exploração sexual.

Em 2018 muitos casos de assédio sexual vieram à tona. Desde então, o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Paraná, Gláucio Araújo de Oliveira, vem trabalhando junto às confederações de esportes visando gerar ações conjuntas de combate a esses crimes. "Trabalhamos com duas frentes: uma de investigação de casos concretos, e outra que é a prevenção. O papel principal é a conscientização para evitar esses casos", revela.

Além da Lei Pelé e da Lei Joanna Maranhão, que alterou o prazo de prescrição de crimes dessa natureza, muitos outros dispositivos legais podem ser usados para punir assédio e violência sexual. Mas esse é um caminho longo e doloroso, porque não é só aplicar uma multa ou determinar uma prisão. "São casos que mexem com traumas que não se apagam com uma indenização ou aplicação de pena. A prevenção, portanto, é o melhor caminho", acrescenta o procurador, que defende maior engajamento das entidades esportivas. "Muitas ficaram preocupadas à época dos escândalos, mas quase não se fala mais no assunto atualmente."

O procurador, no entanto, destacou a atuação da Confederação Brasileira de Ginástica, modalidade que esteve em evidência em razão das denúncias contra o ex-técnico da seleção masculina de ginástica artística Fernando de Carvalho Lopes. A cada mês, seus gestores vêm promovendo eventos para educação e conscientização de pais, atletas, técnicos e dirigentes. São ações como a desenvolvida no último Troféu Maria Lenk, campeonato brasileiro de natação, quando a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos apresentou sua cartilha sobre o tema. "Esse é um bom momento para reunir e ouvir todas as pessoas envolvidas no esporte", revela Gláucio Araújo de Oliveira, que ainda destaca as cartilhas das confederações de judô, ciclismo e, principalmente, a do Comitê Paralímpico Brasileiro. As cartilhas visam estabelecer regras simples de conduta, como a que um técnico jamais deve se reunir num quarto de hotel a sós com o atleta. Também visam promover um ambiente e relacionamentos mais saudáveis entre comissão técnica, esportistas, famílias e dirigentes.

O Ministério Público Federal do Trabalho não firmou parceria com o Comitê Olímpico Brasileiro, mas a entidade, também a partir de 2018, implementou uma política de enfrentamento ao assédio no esporte e se tornou um dos seis comitês de todo o mundo com ações desse tipo. Além do Brasil, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Noruega, Canadá e Austrália realizam ações com base nas regras do Comitê Olímpico Internacional.

Aqui no país, o COB, com a colaboração da ONU Mulheres e funcionários da própria entidade, elaborou um documento com regras de comportamento, que deve ser cumprido por todos os prestadores de serviço e colaboradores da instituição. Além disso, criou um canal de ouvidoria que garante o sigilo do denunciante e encaminha o caso para o Conselho de Ética da instituição.

Rogério Sampaio, campeão olímpico no judô em Barcelona 92 e, hoje, diretor-geral do COB, falou que, além dessas ações internas, o comitê tem feito palestras e cursos. Os chefes de equipe de cada modalidade que estarão no Pan-Americano em Lima, no Peru, de 26 de julho a 11 de agosto, já passaram por treinamento. E mais: "Todas as delegações, no momento da chegada ao Pan, receberão orientações sobre o que é abuso e assédio, como denunciar e o que é um ambiente saudável de treino e competição", informa Rogério.

O COB, a partir de setembro, ainda disponibilizará no site da instituição três tipos de cursos à distância, para gestores e dirigentes, treinadores e comissão técnica, e atletas. "A inscrição é gratuita e visa evitar toda e qualquer situação de assédio no esporte."

A Confederação Brasileira de Futebol foi uma das entidades que, em 2014, se comprometeram a cumprir dez medidas para evitar casos de abuso sexual e tráfico de jovens nas categorias de base e escolinhas de futebol. Quase cinco anos depois, a CBF não teria cumprido completamente todos os pontos do pacto.

O Ministério Público Federal do Trabalho afirma que, no futebol, as ações têm sido feitas por meio dos clubes e que a entidade que rege o esporte no país participa de forma indireta, autorizando os times a entrar em campo com camisas alusivas às campanhas promovidas. Mas "o que preocupa mesmo são as categorias de base, onde há muito assédio em razão do sonho de sucesso profissional por parte das famílias", afirma Gláucio Araújo de Oliveira, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Paraná.

A CBF não conseguiu nos retornar a tempo do fechamento desta reportagem.

 

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.