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Lei em Campo

Cruzeiro pode ser punido por homofobia de torcida mesmo sem caso na súmula

Andrei Kampff

02/09/2019 19h50

No final do jogo entre Cruzeiro e Vasco, a torcida do clube mineiro entoou cânticos homofóbicos. Mesmo que o jogo não tenha sido paralisado por Marcelo Aparecido Ribeiro de Souza ou que o fato não conste na súmula da partida, o Cruzeiro pode ser enquadrado no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva. O referido artigo fala sobre "praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência".

"Desde a entrada em vigor do CBJD, em 2009, a súmula goza de presunção relativa de veracidade. A súmula não é uma prova absoluta. Pode ser contestada pela parte prejudicada por essa prova. Pode apresentar outras provas que desconstitua a veracidade dos fatos narrados na súmula", explicou o advogado especialista em direito esportivo Martinho Neves.

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal decidiu utilizar a legislação de crimes de racismo para punir homofobia e transfobia. No mês passado o STJD emitiu um comunicado recomendando o combate à homofobia, utilizando justamente a decisão do STF como base.

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O parágrafo 1º do artigo 243-G ainda fala que "caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente".

O canto com base em discurso de ódio contra a comunidade LGBTQ+ foi criado pela torcida organizada cruzeirense Máfia Azul e foi entoado depois que o sistema de som do Mineirão anunciou o gol do Corinthians contra o Atlético-MG, no final do jogo, aos 42 minutos do segundo tempo.

O parágrafo 2º do artigo 243-G ainda versa que a "pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias".

"O CBJD dispõe que as infrações graves que não tenham sido observadas pela arbitragem ou em que exista notório equívoco na decisão podem ser analisadas pela Justiça Desportiva independentemente da decisão ou do relato da arbitragem. Dessa forma, o clube pode ser punido, mesmo que a arbitragem não tenha incluído essa informação na súmula", analisou o especialista em direito esportivo Vinícius Loureiro.

O episódio aconteceu uma semana depois de o árbitro Anderson Daronco ter paralisado o jogo entre Vasco e São Paulo, em São Januário, depois que a torcida dos donos da casa proferiu cânticos homofóbicos contra o clube paulista.

Para Loureiro, houve falha na atuação do árbitro no episódio e deveria ser questionada pelo STJD.

"Se um grupo de torcedores entrar em campo para agredir fisicamente um atleta, não tenho dúvidas de que imediatamente a partida seria interrompida pela arbitragem, com acionamento imediato da equipe de segurança. Se as palavras foram ditas de forma clara e repetida, não deixando dúvidas sobre a possibilidade de a arbitragem ouvir, não tenho dúvidas disso. A infração ignorada pela arbitragem é uma infração grave e, ainda que não relacionada diretamente à partida, faz parte das atribuições da arbitragem. Ao permitir esse tipo de manifestação sem tomar as devidas providências, a arbitragem claramente está deixando de cumprir plenamente sua função e cometendo uma infração disciplinar. Caso tenha sido uma manifestação clara, a obrigação da arbitragem era interromper a partida e relatar o fato em súmula. Ao não fazer, a arbitragem infringe o artigo 266 do CBJD. Além disso, por se tratar de uma forma de agressão, ainda que psicológica, pode-se questionar se a arbitragem não falhou também em seu dever de garantir a segurança dos atletas, já que o artigo não se refere expressamente à segurança física. Nesse caso, pode-se entender como configurada infração ao artigo 267", resumiu.

Na semana passada os clubes brasileiros se uniram para combater a homofobia nos estádios brasileiros em uma campanha inédita. "Clubes da série A se unem pelo combate à homofobia, não somente em campo, mas no dia a dia. São inaceitáveis práticas ainda existentes em nossos estádios: temos que dar um basta!", diz o comunicado divulgado por todos os 20 clubes no Twitter, no último dia 30.

Por Thiago Braga

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.