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A súmula não é mais soberana. Mas ainda carrega a presunção de veracidade

Andrei Kampff

03/10/2019 17h16

A súmula deixou de ser soberana na Justiça Esportiva.

Isso não quer dizer que ela deixou de ser importante. Nada disso. Ela ainda carrega a necessária presunção relativa de veracidade das súmulas arbitrais, com o que nela esta registrado. Até porque, em muitos casos, os julgamentos tem apenas o que nela consta como referência dos fatos ocorridos. 

E é importante que ela não seja mais a "toda poderosa". Afinal, o árbitro tem como principal função aplicar as regras da modalidade à realidade do jogo. E esta "realidade" se apresenta de acordo com a percepção dele diante dos fatos.

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E claro que essa  percepção é influenciada por diversos fatores. E não se trata aqui de levantar hipótese de má-fé, nada disso. O fato é que a percepção pode não condizer com a leitura feita por outras pessoas depois de ter acesso a novas provas.

Por isso, é importante não se tornar refém apenas da súmula. É sempre indispensável que a Procuradoria dos tribunais esportivos trabalhe sempre na busca e apresentação de provas complementares. 

No texto de Vinícius Loureiro, advogado especializado em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.

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Kant, Wittgenstein, Berkeley e a presunção de veracidade das súmulas

 

Um dos principais pilares da atuação da Justiça Desportiva é a presunção relativa de veracidade das súmulas arbitrais e dos relatos nelas contidos. Em grande parte das modalidades, é apenas com base na súmula que os casos são julgados, uma vez que não há gravação ou transmissão das partidas por meio audiovisual, e o uso de testemunhas é bastante incomum em casos mais simples, como expulsões por desrespeito à arbitragem.

Quando há uma denúncia baseada na súmula, os auditores presumem que os fatos ali narrados retratam a realidade dos fatos. No entanto, poucos consideram que o conceito de realidade é um tanto quanto complexo. Partindo de uma perspectiva kantiana, o que percebemos do mundo não é retrato da realidade, mas uma mera representação da forma limitada que nossa estrutura cognitiva traduz aquilo que nossos sentidos percebem, processando tais informações sob uma dimensão fenomenológica e racional.

De pronto, podemos observar que a realidade é individual, mutável e sempre incompleta, seja pela limitação de nossos sentidos, seja pelas limitações de nossa racionalidade, como propõe Herbert Simon. Ou seja, a forma como cada indivíduo compreende o mundo e seus acontecimentos não é absoluta e generalizável.

Mais que isso, a percepção da realidade pode ser ambígua para um mesmo indivíduo, como afirmava Wittgenstein. Um mesmo fenômeno pode ser traduzido de maneiras diferentes e ao mesmo tempo por um mesmo indivíduo, gerando compreensões contraditórias daquilo que ocorre e criando realidades sobrepostas. Wittgenstein usa como exemplo a figura a seguir.

A imagem representa um animal. Este animal, no entanto, pode ser um pato ou um coelho. Esse é um dos mais claros retratos da ambiguidade de percepção, que ocorre quando nosso cérebro processa informações enviadas pelos nossos sentidos e encontra mais de uma correlação possível, sem que nenhuma delas seja uma correlação perfeita. Nesses casos, sendo obrigado a tomar uma decisão imediata, o cérebro preenche as lacunas por aproximação e interpreta aquilo como sendo a realidade. Esse processo é influenciado por uma série de questões, como o ambiente no qual o indivíduo está inserido, o nível de estresse ao qual está sujeito no momento e qual é a realidade esperada para aquele cenário.

Um árbitro tem como principal função aplicar as regras da modalidade à realidade do jogo. Esta realidade, como demonstramos até agora, depende de sua percepção dos fatos. E essa percepção é influenciada por diversos fatores internos e externos. Árbitros menos experientes ou que estejam por qualquer motivo sujeitos a um maior nível de pressão e cobrança, interna ou externa, tendem a assumir posturas mais defensivas, e isso influencia em sua percepção de realidade, podendo interpretar uma simples manifestação de um atleta como uma ofensa, processando palavras por semelhança, especialmente em ambientes ruidosos.

Mais ainda, se formos considerar a proposição de George Berkeley e sua ideia de realismo subjetivo, eventual relato da arbitragem nesse sentido será absolutamente condizente com a realidade, já que para ele a realidade nada mais é do que um produto da nossa mente. Ainda que extrema, se levada ao limite, a proposição de Berkeley nos levará ao solipsismo. Neste caso, apenas nossa mente existe, sendo todo o resto percepções dela.

Sem a necessidade de chegar a tal extremo, é fato de que tudo aquilo que vivemos pode ser diferente do que aconteceu de fato. O mesmo se aplica aos relatos dos árbitros nas súmulas das partidas. Ainda que não exista qualquer má fé no preenchimento do documento, ele pode não condizer com o conjunto de fatos ocorridos durante o jogo. Por este motivo, cada vez mais é indispensável a apresentação de provas complementares por parte das Procuradorias dos STJDs como forma de possibilitar um melhor entendimento dos auditores, sem se apoiar única e exclusivamente na presunção de veracidade das súmulas.

Cada vez mais comuns, ao menos nas grandes modalidades, os vídeos das partidas em geral são de fácil acesso aos procuradores e, cada vez mais, a não apresentação de tais provas complementares pode ser entendida como uma tentativa de ocultar fatos ligados às infrações, enfraquecendo os relatos das súmulas, ainda que estes continuem sendo analisados como verdadeiros. Seja o vídeo considerado a melhor prova ou uma prova relevante, o que deverá ser sopesado caso a caso, não se pode discutir que é fundamental para que cada auditor possa analisar sua própria realidade de cada caso, não tomando a decisão com base em uma única realidade, essencialmente maculada: a do árbitro.

Isso não quer dizer que a súmula e suas informações sejam descartáveis ou secundárias, apenas que para julgamentos mais justos e que adequados aos casos, provas complementares são sempre relevantes, não devendo haver acomodação por parte da Procuradoria com a presunção de veracidade das súmulas, já que o que se presume é a veracidade da súmula, não a realidade dos fatos.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.