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Lei em Campo

Como está Santiago faltando 18 dias pra final? Os motivos da troca de sede

Andrei Kampff

05/11/2019 08h00

Uma reunião hoje em Assunção, no Paraguai, deve definir nova sede para a final da Libertadores da América, entre Flamengo e River Plate. E, uma nova data: 30 de novembro.

Conmebol esperou o que pode, mas o próprio governo chileno se vê impotente diante dos fatos.

Uma crise que começou há três semanas, e tomou proporções inimagináveis. O país está convulsionando. Santiago, incendiando.

A bola parou, literalmente. Sem jogar o Campeonato Chileno há três semanas, uma reunião ontem entre a Ministra do Esporte, Cecília Perez, e o Presidente da Federação Chilena, Sebastian Madero, não conseguiu definir o reinício do torneio para o próximo fim de semana. O intendente de Santiago. Felipe Guevara, declarou"Se não formos capazes de fazer o torneio nacional, seria irresponsável fazer a final da Copa Libertadores". 

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A Conmebol trabalha com um plano B, e estuda possibilidades inclusive jurídicas desde o dia 23 de outubro, cinco dias após as manifestações começarem.  Nunca escondendo o desejo de manter o jogo em Santiago, mas precisando se preparar para o cenário apresentado. É gestão de risco.

Mesmo com a situação muito difícil, o presidente da entidade torcia por uma paz que ainda não chegou. Jogar no Chile seria importante para não ter que mudar de local a final pelo segundo ano seguido, e por causa de compromissos financeiros assumidos por patrocinadores e torcedores.

Mas a situação insiste em não melhorar. Pessoas de dentro da entidade sul-americana já se manifestaram pela troca de local para o presidente Alejandro Dominguez. O presidente está acompanhando de perto, e também está assustado.

Entenda como está Santiago faltando 18 dias para a final com Cauan Biscaia, jornalista que vive no Chile há oito anos e está acompanhando a situação para o Lei em Campo.

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Por la razón o por la fuerza. O lema pátrio do brasão chileno nunca calçou de maneira tão ajustada à atual realidade do país cordilheirano, que vive o seu maior conflito social desde a época do regime militar de Augusto Pinochet. O colapso social que se desatou no dia 18 de outubro continua vigente e sem horizonte de normalidade, protestos massivos são convocados diariamente e o povo demonstra exponencialmente que a luta continuará sem tréguas para o governo de Sebastián Piñera. O cotidiano chileno vive outro tipo de "normalidade": a das buzinas, cacerolas, barricadas, gás lacrimogêneo, repressão policial e destroços a comércios e patrimônios públicos. A fase mais apocalíptica já passou, é bem verdade, porém, a realidade atual não dá nenhum sinal de pacificação. Apesar do caótico contexto em evidência, a Confederação Sul-Americana de Futebol insiste na falta de bom senso para gerar um clima de tranquilidade à sua tão sonhada final única da Copa Libertadores, marcada para Santiago no dia 23 de novembro, nesta cidade sem clima e sem condições para receber tamanho evento de massiva convocatória entre turistas e torcedores de Flamengo e River Plate. Paralelamente, o Governo do Chile parece menosprezar o poder das manifestações, e tenta reiteradamente empurrar goela abaixo a sua suposta capacidade e disposição de garantir a segurança dos quase 50 mil expectadores que já compraram seus ingressos para o Estádio Nacional. No afã de forçar uma normalidade inexistente no país, acreditam, dentro da sua limitada racionalidade, que o futebol poderá salvar uma imagem já deteriorada por tanta desconformidade social e sua enorme desaprovação. Se a intenção dos políticos é dar circo ao povo para acalmá-los, a intenção do povo é de botar fogo nesse circo.   

 

Nos últimos dias tem circulado pelas redes sociais alguns cartazes promovendo uma manifestação nas imediações do Estádio Nacional com o intuito de arruinar, estropear, funar (como dizem os chilenos) a final da Libertadores. Se bem a autenticidade desta marcha é duvidosa, já que a mesma foi mais propagada na Argentina que no Chile, o povo chileno anda tão em ebulição que até água seria capaz de catalisar tal motivação. Na última quarta-feira (30), quando a ministra do esporte Cecilia Pérez anunciou que a final se disputaria em Santiago, com respaldo e agradecimento imediato da Conmebol, provavelmente o que passava na cabeça destas autoridades era que o clima estava propicio para amenizar-se, se aproximava um feriado prolongado para que todos pudessem viajar e descontrair os ânimos, e que na segunda-feira tudo voltaria à letargia anterior a outubro. Entretanto, dois dias depois lá estavam cerca de 100 mil chilenos nas ruas do centro da capital e de outras cidades do país, batendo panela e alçando vozes contra o governo. O lema era claro: "isso não vai parar", e nos dias seguintes as marchas continuaram, com mais ou menos convocatória, mas estiveram presentes até nas redondezas da casa do presidente Piñera, quando no último domingo milhares de ciclistas subiram o cerro do setor oriente para invadir a "praia" da zona nobre e gritar pelas suas demandas contra o algoz de toda a insatisfação popular. No dia seguinte mais protestos, na chamada para o #SuperLunes que congregou outros milhares na Plaza Itália, terminando como sempre tem sido habitual em qualquer manifestação no país: Carabineros de Chile distribui bombas de gás lacrimogêneo e jatos potentes de água química, e os encapuchados respondem com pedras, barricadas, fogo e até coquetel Molotov. Se esse cenário representa normalidade, estamos imersos numa esquizofrenia induzida.

 

Nesta segunda-feira, outra pauta em discussão foi a possibilidade de retomar o futebol chileno e principalmente o seu campeonato da Primeira Divisão, paralisado há duas semanas. Em reunião entre o Ministério do Esporte e a ANFP (Asociación Nacional de Fútbol Profesional), se esperava que este assunto fosse o principal prato do dia, mas surpreendentemente o eixo da conversa foi a candidatura do Chile para sediar a Copa do Mundo de 2030, futebol feminino, convênios entre as entidades e até a final da Copa Libertadores. De futebol chileno, absolutamente nada. Horas mais tarde, o Intendente da Região Metropolitana, Ramón Guevara, afirmou que hoje se definirá o destino do campeonato chileno, mas deixou claro que a intenção é de reiniciar as atividades o quanto antes. Justamente no mesmo dia que a Conmebol se reunirá com presidentes dos clubes finalistas da Libertadores, além dos mandatários das associações de futebol da Argentina, Brasil e Chile, para bater o martelo sobre a factibilidade de Santiago ser realmente a sede da decisão continental. Entre tantas incertezas e mistérios, alguns jogadores chilenos decidiram se expressar sobre a situação do país e também sobre o futuro do esporte em épocas convulsionadas. Jorge Valdivia, ex-jogador do Palmeiras foi enfático ao dizer que "o mais coerente seria que o campeonato terminasse antecipadamente, com a Universidad Católica campeã e sem descenso". Já o atacante Esteban Paredes, maior artilheiro da história do campeonato chileno, e referente do Colo-Colo, foi mais incisivo ao dizer que "o futebol passou a segundo plano, hoje lutamos por coisas maiores. Não somos partidários de que se retome o torneio. O Governo e a ANFP querem retomar o futebol para acalmar o povo, mas nós não concordamos com isso". Com este ambiente de opiniões cruzadas e vontades opostas, o futebol chileno está em xeque. Só nestas duas semanas já houve a suspensão do Sul-Americano de futsal, e um amistoso entre Chile e Bolivia, marcado para 15 de novembro, além de uma paralisação dupla da décima-segunda rodada da Primeira Divisão. Difícil acreditar que com tantos percalços para organizar o seu próprio futebol, as autoridades do país estejam preparadas para eventos de maior apelo popular e midiático como uma final de Libertadores.

 

Mas dado o contexto, e se a Conmebol decidir de uma vez por todas descartar Santiago como sede da final entre Flamengo e River, quais possibilidades estariam sobre a mesa nesta possível reunião extraordinária que se levaria a cabo? Como já foi mencionado em semanas anteriores, a cidade de Assunção, no Paraguai, continua sendo o nome forte do plano B (que não existe oficialmente). Para confundir ainda mais os apreensivos torcedores que já desembolsaram seus dólares para esta partida, hoje se ventilou a opção de Miami receber a decisão, uma ideia que soa tão estapafúrdia como foi a realização do Boca x River em Madri, no ano passado. Muitos tem se perguntado sobre a possibilidade de a Conmebol abdicar da final única e manter, pelo menos para este ano, o clássico "ida e volta". O problema é que o regulamento da competição já não pode ser alterado, e o inciso 4º do artigo 26, Capítulo III, esclarece com propriedade que "O troféu CONMEBOL Libertadores e as medalhas ao campeão e vice-campeão serão entregues em uma cerimônia de premiação imediatamente depois de finalizada a partida da final única, na qual se decide o campeão".  Além do mais, está o maior problema que diz respeito aos ingressos já vendidos, já que o inciso 2º do artigo 100, Capítulo XI, deixa evidente que a Conmebol é responsável pela venda das entradas para o último jogo da Libertadores. Somando-se a tudo isso, há uma sanção aplicada pela Conmebol ao River Plate pelo uso excessivo de sinalizadores no jogo de ida da semifinal contra o Boca Juniors, infringindo os artigos 8 e 21 do Regulamento Disciplinário, o que acarretaria numa final em Buenos Aires sem público, algo nada atrativo para organizadores da competição. Portanto, no caso de uma desistência da entidade sul-americana para manter Santiago como palco da sua festa, a opção mais viável, e provável, é que a partida se dispute no Estádio Nueva Olla, do Cerro Porteño, possivelmente em 30 de novembro, a tão só 11 dias do Mundial de Clubes.

 

Pela razão ou pela força, a queda de braço entre autoridades políticas e o povo chileno se inclina para o lado da maioria. Mesmo que o poder dos presidentes, ministros e intendentes seja maior no âmbito decisivo, na atual conjuntura quem manda e está na posição de comandar exigências é a população enraivecida. Meios argentinos e brasileiros, jogadores, torcedores e jornalistas, são quase uníssonos ao opinar: jogar esta final em Santiago continua sendo uma irresponsabilidade. Só o dia de hoje poderá colocar fim a este roteiro digno de imprecisões e insensibilidades por parte dos donos do espetáculo. A seguir, adelantos del próximo capítulo…

 

 

Por Cauan Biscaia

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.