No Dia Mundial do Combate à Homofobia, esporte perde de goleada
O esporte também nasceu da ideia de integração. Pratica-se para conviver. Em tese, ele seria um habitat natural para a inclusão. Não tem sido assim.
O racismo se manifesta em arenas, ginásios e estádios. A homofobia também.
São muitos os casos de manifestações coletivas ou individuais que contrariam a lei; mesmo assim, são raras as punições na esfera esportiva.
A verdade é: o futebol é culturalmente um ambiente heterossexual. Foi construído por homens para homens. Mas outros esportes também demonstram resistência e preconceito contra homossexuais.
Até acho que ele tem evoluído nessa questão, se tornando menos preconceituoso e mais aberto às diferenças.
Mas a Justiça Desportiva não tem acompanhado essa evolução, mesmo com punições recentes.
Especialistas entendem que existe caminho jurídico para punir quem age contrariando a lei e um princípio caro ao esporte, o da não discriminação.
O problema é mais cultural.
Os próprios julgadores entendem que essas condutas pertencem ao ambiente esportivo, sendo, portanto, condutas normais.
Zeca Cardoso conversou com especialistas que mostram caminhos que podem ajudar o esporte a ser um ambiente mais saudável e menos preconceituoso.
Nesta sexta-feira (17), é celebrado o Dia Mundial do Combate à Homofobia. O dia foi escolhido pois justamente nessa data, em 1990, a homossexualidade foi excluída da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, apenas no dia 4 de junho de 2010, por meio de decreto presidencial, foi oficialmente instituído o Dia Nacional do Combate à Homofobia.
Um gravíssimo problema no mundo e, ainda mais, no nosso país. Dentro do mundo esportivo, não poderia ser diferente. Vivemos em uma sociedade homofóbica, portanto, os esportes também o são. No estádio de futebol, os gritos de "bicha" são ouvidos de norte a sul quando o goleiro adversário bate o tiro de meta.
"Essa ideia da heteronormatividade, da homofobia, da lgbtfobia é mais exacerbada em alguns ambientes. No esporte temos uma questão bastante evidente de desigualdade de gênero. O futebol, no Brasil, acabou se consolidando para ser praticado e consumido por homens heterossexuais, que estariam adequados a certo modelo de masculinidade hegemônica", explica o historiador Maurício Rodrigues, autor da tese de mestrado "Pelo direito de torcer: movimentos e coletivos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol".
Um ambiente construído para ser exclusivo para homens heterossexuais. E que, por muitas vezes, entende o comportamento homofóbico como natural, como parte do jeito de torcer. "Como forma de estigmatizar e diminuir o outro, acaba feminizando e apelando para as manifestações de teor homofóbico. É um reflexo da sociedade. Porque ela tem essa matriz heteronormativa", detalha Maurício.
Cânticos homofóbicos são ouvidos nos estádios em todo o país. Em São Paulo, torcedores de Palmeiras e Corinthians entoam coros contra o clube rival homônimo da cidade. No Rio de Janeiro, vascaínos, flamenguistas e botafoguenses direcionam o preconceito contra os tricolores.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) prevê punição para esses atos, como relata o especialista em direito e justiça esportiva Vinícius Loureiro. "O mais claro e mais direto que temos no CBJD é o artigo 243-G, que trata de práticas discriminatórias. Em um primeiro momento, a simples aplicação efetiva do CBJD seria suficiente para inibir as ações e, também, para incentivar a punição a quem pratica esse ato. A própria torcida iria começar a coibir essas atitudes, como já faz com o arremesso de objetos no gramado, por exemplo."
Mas voltamos ao ponto inicial da discussão. Os atores envolvidos no futebol entendem o ambiente como um lugar para a virilidade, a masculinidade. Como algo que faz parte da cultura futebolística.
"A legislação esportiva, tanto no Brasil como na Fifa, traz punição pela prática de atos discriminatórios. Caso a torcida cometa esses atos, os clubes são passíveis de punição. Mas uma grande dificuldade é quando quem vai julgar, tanto no Brasil quanto fora, entende que essas condutas são normais e pertencem ao futebol. Logo, dificilmente irão punir essa conduta. Ainda que a legislação esportiva preveja hipóteses e mecanismos de sanção", afirma a advogada especialista em direito e justiça esportiva Danielle Maiolini.
Um problema ainda sem solução é o da composição dos tribunais de Justiça Desportiva, formado em sua maioria por pessoas que ainda não entenderam a complexidade da questão. "O fato de serem compostos quase exclusivamente por homens brancos e heterossexuais faz com que exista essa dificuldade de compreensão do problema e do que representa a homofobia, e o quanto existe de violência. A falta da representatividade nessas escalas de poder, imagino que dificulte a compreensão de se fazer esse debate e de como ele é urgente", reflete Rodrigues.
O entendimento de uma parcela da população pode ser de que a Justiça Desportiva é omissa nos casos relacionados a homofobia. Para Maiolini, o problema é justamente o de identificação com o tema. "Não é que a Justiça Desportiva seja omissa na denúncia ou no processamento dessas situações. Mas muitas vezes no julgamento, se a pessoa que for julgar entender que isso é comum, ela eventualmente vai atenuar algo que é muito grave."
No vôlei, em 2011, o Sada Cruzeiro foi punido por cânticos homofóbicos da sua torcida direcionados ao atleta Michael, do Vôlei Futuro. Foi a primeira vez que a Justiça Desportiva brasileira condenou um clube por um ato de homofobia. O Sada foi multado em R$ 50 mil.
Vinicius Loureiro aponta para outro problema que pode colaborar com a pouca fiscalização sobre atitudes homofóbicas. "Especialmente aqui no Brasil, clubes e federações têm medo de tomar qualquer atitude em relação aos torcedores. Então, isso gera falta de limites. A mesma questão relacionada aos atos de violência física, racismo. O clube precisa trabalhar na conscientização do torcedor."
Nesta semana, na Austrália, o jogador de futebol Andy Brennan assumiu ser homossexual publicamente. O atleta de 26 anos, que atua no Green Gully Soccer Club, declarou a sua orientação sexual por meio de um relato publicado no site da Associação de Jogadores Profissionais de Futebol da Austrália. Recentemente, o ginasta Diego Hypólito assumiu ser gay em entrevista ao UOL.
"Se pensarmos o futebol e o esporte como uma manifestação cultural importante, existe uma pedagogização para se tratar com naturalidade esse tipo de violência. Isso traz uma dificuldade para a comunidade LGBT se sentir acolhida e ter vontade de participar desse universo", expõe o historiador Maurício Rodrigues.
No universo legislador, o meio para punir atitudes discriminatórias, Vinícius Loureiro aponta melhorias que poderiam ajudar no combate à homofobia. "Além de um projeto que envolva orientação para arbitragem, atletas e atores envolvidos para relatarem esses atos, poderia ser pensada uma flexibilização da tabela de custos dos tribunais. Em geral, fazer uma notícia de infração tem um custo que não é baixo, e isso desincentiva. Os tribunais poderiam pensar em flexibilizar para casos de homofobia, como parte de uma política de combate", pede o especialista em direito esportivo.
Por Zeca Cardoso
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