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Lei em Campo

A revolução do streaming afeta clubes, produtores de conteúdo e o direito

Andrei Kampff

19/11/2019 04h00

O esporte também precisa ser discutido juridicamente. Ele e o Brasil mudaram radicalmente nos últimos tempos; nossa legislação, não. E a revolução do streaming é só mais um exemplo que escancara como nossas leis estão ultrapassadas.

A Disney lançou na semana passada o Disney +, o serviço de streaming do grupo, e o resultado já superou a expectativa de especialistas na área e da própria empresa de entretenimento. A nova ferramenta de produção e distribuição de conteúdo está funcionando por enquanto em apenas três países, Estados Unidos, Canadá e Holanda. Já no primeiro dia, o serviço foi assinado por 10 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos a plataforma oferece um pacote com séries e filmes, e também um mais completo que dá acesso a programação de esportes da ESPN. 

Por mais que o número de assinantes no primeiro dia tenha superado as previsões, o resultado está longe de ser surpreendente. Ele confirma uma realidade que o próprio mercado brasileiro já entendeu. A forma de entregar e consumir conteúdo mudou. O streaming já chegou com o futuro. O Apple entrou nesse mercado, e o DAZN virou protagonista entre os players de produção e distribuição de conteúdo esportivo.

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E o que isso tem a ver com o Direito Esportivo? TUDO!

O streaming já foi questionado juridicamente na Inglaterra, sob a alegação de ser caminho fácil para a pirataria. O Judiciário não entrou nessa história. Ele reforçou que a plataforma é constitucional e ajuda no indispensável acesso à informação. No Brasil, a chegada do streaming acelerou a discussão sobre o Direito de Arena (direito de transmissão), hoje tipificado pela lei do esporte, a Lei Pelé, no artigo 42.

Empresas globais estão de olho em eventos esportivos brasileiros.

Com isso, claro que o evento se cacifa, os clubes e entidades esportivas passam a negociar com mais gente. Os direitos de transmissão serão liberados por muito mais dinheiro. Isso é Direito de Arena, e está diretamente relacionado à produção de conteúdo. Mas também o direito de imagem, contratos de publicidade, exposição dos patrocinadores, negociação clubes/entidades esportivas. Tudo isso também envolve Direito Esportivo. E tem a ver com streaming.

A TV tradicional não é mais onipotente na construção do imaginário coletivo. Ela, que nos últimos tempos via as redes sociais repercutirem os assuntos "espelhados" nas grades dos telejornais, hoje se vê tendo que olhar para a internet e o que está repercutindo por lá para definir uma estratégia e "paginar" seus programas.

O streaming (tecnologia de transmissão instantânea de dados), as redes sociais e o compartilhamento tomaram conta da produção de conteúdo. Nas ligas americanas, muitas já preferem negociar com plataformas de streaming. Por mais diferente que seja a realidade americana da brasileira, o Brasil também começou a se dar conta dessa e de outras vantagens.

A Liga Nacional de Basquete neste ano passou a apostar no conceito de multiplataforma para os jogos do NBB, a principal competição do basquete brasileiro. Ou seja, a Liga decidiu deixar o parceiro de dez anos, Globo/Sportv, para ter seu produto transmitido por ESPN, Fox, Band, Facebook e Twitter. E mais: segundo levantamento da Folha de S.Paulo, esse movimento está cada dia maior nos esportes brasileiros. Atualmente já possível acompanhar pela internet, regularmente e ao vivo, competições nacionais e internacionais de mais de vinte esportes olímpicos, incluindo o futebol.

A Liga dos Campeões da Europa, o principal campeonato de futebol entre clubes do planeta, já tem transmissão pelo Facebook no Brasil. A Libertadores da América, também. A Copa Sul-americana tem transmissão exclusiva do DAZN. além da exclusividade no Brasil dos campeonatos de futebol da Itália e da França.

E nossa legislação não tem acompanhado essa revolução na comunicação.

Como é a lei hoje

O Direito de Arena está definido pela lei do esporte, a Lei Pelé, no art 42.

Diz a lei que esse é um direito que pertence às entidades esportivas, que, com o amparo legal, podem negociar a captação, transmissão, retransmissão, por qualquer meio, de evento esportivo de que participem. O artigo 42, trata do tema e determina que "os clubes têm a prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, fixação, emissão, transmissão, retransmissão ou a reprodução de imagens por qualquer meio ou processo de espetáculo desportivo de que participem" (a restrição não se aplica à exibição de flagrantes do espetáculo para uso exclusivamente jornalístico). E, após atualização em 2011, também determina que 5% da receita proveniente da exploração dos direitos desportivos audiovisuais serão repassados a cada jogador participante do espetáculo.

A Lei Pelé é de 1998 e ela não conseguiu prever esse tsunami que transformou o mercado audiovisual. O texto,  por exemplo, não esclarece se o direito de arena pertence exclusivamente ao clube mandante ou ao visitante também. Algo que passou a ser mais relevante quando o Esporte Interativo tirou da TV Globo a exclusividade de transmissão do Campeonato Brasileiro. Alguns clubes negociaram com a nova emissora, e a partir deste ano as transmissões estão divididas entre as duas empresas.

Mas, ainda mais complicado para os dias de hoje. Na Lei não há nada sobre streaming, sequer qualquer menção sobre transmissão via internet. Isso é um grande problema, e nossos legisladores precisam urgentemente entender esse novo momento da comunicação.

O que pode mudar

Existe um Projeto de Lei no Senado Federal, o PL 68/17. Entre outras coisas (ele tipifica o crime de corrupção privada, mas isso é assunto para uma coluna inteira), trata do Direito de Arena. O artigo 206 determina que todas as regras existentes para a TV sejam válidas também para a transmissão, uso e veiculação de imagens dos eventos esportivos na rede mundial de computadores. Ou seja, mesmo sendo de 2017, o  anteprojeto já prevê a era do streaming. E, importante também, determina que o detentor de imagem é o mandante do jogo, para acabar com a lacuna existente na lei atual.

A verdade irrefutável é: a TV aberta deixou de nadar soberana como a detentora do monopólio da informação coletiva. E ela também sabe que esse é um caminho sem volta. E nossa legislação precisa acompanhar esse movimento.

O Direito esquece sua essência quando perde a sintonia com a sociedade, com sua evolução e transformações sociais. Se adequar aos novos tempos é mais do que entender o streaming e as diferentes possibilidades legais que ele apresenta, é estar cumprindo com seu papel social.

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Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.