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Lei em Campo

A história da Europa também ajuda a entender o racismo no futebol por lá

Andrei Kampff

15/12/2019 04h00

Qualquer tipo de preconceito precisa ser condenado. O movimento esportivo tenta ser mais rigoroso com aqueles que insistem em desafiar a civilização, mas o resultado tem sido pouco eficaz.

E pela natureza democrática e inclusiva que tem, com contato permanente entre os tipos mais diferentes, o esporte também convive com esse absurdo. Especialmente na Europa.

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Mais um fenômeno que se explica também pela história. Os  europeus escravizaram o continente africano, saquearam a América do Sul e a América Central, sempre propagando e acreditando na ideia de pertencerem a "raça superior"

É fundamental entender que esporte também é um catalisador de transformações sociais no mundo, e no Brasil. Ele ajudou na luta contra o racismo, contra a discriminação aos mais pobres, até na abertura democrática durante os anos da ditadura por aqui

Devido à força que o esporte tem como instrumento de transformações, não podem existir fronteiras entre ele e causas importantes para a sociedade.

No mundo, muitos são os exemplos de atletas que entenderam que sua força vai muito além de uma pista ou quadra ou campo, e que eles podem ser agentes importantes na construção de uma sociedade melhor, menos excludente e mais humana.

Entenda mais com Martinho Neves, procurador de justiça e colunista do Lei em Campo.

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A Qualquer Custo

"A Qualquer Custo" (2016) é um filme de faroeste moderno que acompanha os passos de dois irmãos do interior do Texas, Estados Unidos, que, pressionados pela proximidade do vencimento da hipoteca da fazenda da família, resolvem assaltar bancos para obter a quantia necessária ao pagamento.

Os crimes atraem os Texas Rangers, força policial civil texana e dois oficiais são destacados para o caso: Marcus, veterano prestes a se aposentar, e Alberto, um descendente de índios e mexicanos. Alberto é alvo habitual de piadas racistas de seu parceiro Marcus, mas sempre procura ignorá-las.

A postura do velho Marcus é o resultado de uma herança cultural advinda do velho continente, e que surgiu após o início da "era dos descobrimentos", em que os europeus constataram a diversidade de culturas e etnias entre os povos.

Uma das consequências desse contato foi a de que alguns passaram a repudiar culturas com as quais não se identificavam, levando o renomado antropólogo François Laplantine a denominar esse movimento de "Recusa do estranho".

Essa ideologia menosprezava e ainda menospreza, tudo o que não seja compatível com um modelo de cultura europeu.

E o racismo constitui-se na vertente mais repugnante dessa forma de pensar, por preconizar que a formação anatômico-fisiológica das pessoas permite que uns sejam mais "humanos" que outros.

Diga-se passagem que o próprio nome "racismo", é contraditório em seus próprios termos, vez que a biologia e a genética são uníssonas em afirmar que diferenças étnicas entre seres humanos não produzem outras raças dentro da única raça que é o "homo sapiens".

O fato é que, depois de um período de aparente esquecimento na segunda metade do século XX, a xenofobia ressurge em alta escala no século XXI, diante da crise econômica mundial, acompanhada de forte desemprego.

Sua repercussão no esporte foi imediata, já que este segmento, mais do que qualquer outro, gera contatos entre componentes das mais diferentes etnias, classes, origens e religiões.

A exteriorização do preconceito vem se dando especialmente por gestos, cânticos e xingamentos de torcedores, que embora ocorram em todo o mundo, encontraram na Europa o seu maior foco de propagação.

É curioso o fenômeno do racismo na Europa, pois como sustentar que os europeus são hierarquicamente superiores se a história mostra que foi precisamente a Europa quem destroçou o continente africano, saqueou a América do Sul e arrasou os povos da América Central? Isto é ser superior?

Aliás, "A qualquer custo" trata da histórica dívida americana em relação aos nativos que dominavam o oeste, tendo os europeus contraído também enorme dívida junto aos povos "colonizados".

O mínimo que deveriam fazer seria reconhecer os erros de seus antepassados e tratar bem os descendentes dos povos que tanto expoliaram, mas infelizmente nem todos pensam assim…

Outra faceta abordada pelo filme diz respeito ao porte de armas, que é muito explorado ao longo da projeção, mostrando que a população inteira de uma cidadezinha está armada até os dentes e ansiosa para descarregar seus pentes de balas diante de qualquer entreveiro.

Eufemisticamente, podemos dizer que o mesmo se dá com o racismo no esporte, especialmente na Europa. Armados de sentimentos de aversão por quem é diferente até a raiz dos cabelos, certos torcedores ávidos em destilar o preconceito encontram na arquibancada o habitat perfeito para descarregar seu ódio.

Como é sabido, o homem, quando está envolto pela multidão, é capaz de dar vazão aos seus instintos mais primitivos e obscuros, já que as aglomerações dão ao indivíduo maior sensação de impunidade, criando um mundo onde tudo é possível.

Além disso, há no esporte algo muito singular. É que os atos racistas perpetrados pelos torcedores invariavelmente são cometidos com uma ressalva: dirigem-se essencialmente contra os atletas adversários, mesmo sabendo os agressores que há desportistas de diferentes etnias em sua própria equipe.

Eis um fator pouco notado e que dá ao racismo esportivo uma conotação peculiar e ainda mais triste:  a ofensa racial é utilizada principalmente com o fim de desestabilizar emocionalmente o adversário, de forma a obter uma vantagem indevida para garantir uma vitória a qualquer custo na disputa.

Ouseja, o racismo no mundo esportivo tem ainda esta agravante, igualando-se às piores e mais reprováveis formas ilícitas de obtenção de vantagem desportiva como o doping, a corrupção, fraudes, ameaças, etc.

"A Qualquer Custo" mostrou quão errados estavam os irmãos texanos em buscar a quitação da hipoteca de qualquer maneira. Da mesma forma no esporte. A vitória não pode ser buscada a qualquer custo, ainda mais à custa de ofensa racial, pois a vítima não o suporta a um custo qualquer…

A beleza no triunfo esportivo (e, porque não dizer, na própria vida?) só existe quando atingida pelos próprios méritos, e não na conquista a qualquer preço, ainda mais quando ajudada por tamanho desrespeito ao adversário.

Nunca nos esqueçamos que as grandes vitórias advém não só do talento, mas sobretudo do esforço pessoal, da garra e determinação dos competidores que se superam a cada dia na obtenção de suas conquistas.

Eis o exemplo que fica e que deve ser aprendido a qualquer custo:

Os verdadeiros vencedores sempre ganham na "raça".

Jamais pelo racismo.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.