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Lei em Campo

Punição ao doping por maconha e cocaína no esporte irá mudar. Entenda

Andrei Kampff

23/01/2020 10h58

Esta é uma informação importantíssima para o mundo esportivo.

O esporte vai mudar entendimento em relação ao doping em função de drogas sociais, como maconha e cocaína. A Agência Mundial Antidoping divulgou algumas mudanças em seu código que entrarão em vigor no início do ano que vem, e essas já provocam uma série de reflexões necessárias.

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Doping é tratado com rigor no esporte. E fica fácil de entender.

A explicação pode estar no fato de o doping ir na contramão de princípios caros ao esporte, como o da paridade de armas. A trapaça fere também o espírito do "jogo limpo".

Pierre de Coubertin, o "pai" dos jogos olímpicos modernos, escreveu em suas Memórias olímpicas que o olimpismo é uma "escola de nobreza e de pureza moral, bem como de resistência e energia física – mas só se (…) a honestidade e a abnegação do esportista forem desenvolvidas de forma tão acentuada quanto a força dos músculos"

O Código Mundial Antidoping reforça a ideia do jogo-limpo ao determinar que visa "proteger o direito fundamental dos atletas de participar de atividades esportivas isentas de doping, promover a saúde e garantir assim aos atletas do mundo inteiro a eqüidade e a igualdade no esporte"

Agora, é importante se entender que essas drogas sociais não trazem melhora de rendimento esportivo ( não atacando o princípio da paridade de armas), e que são muito mais um problema social do que esportivo. Além disso, não se pode esquecer que a prática esportiva e a continuidade da atividade profissional possuem papel social importantíssimo. 

A medida é importante, mas é preciso debater algumas questões importantes:

Se já se sabe que drogas sociais trazem prejuízo à saúde do atleta, e que ele anda tendo um prejuízo profissional gigante por algo que se entende que deva mudar, por que esse entendimento não passa a valer desde já?

Outra: se vai valer a partir de 2021, um atleta condenado por doping social com uma pena de 2 anos no final de 2020 será mais prejudicado que aquele flagrado alguns dias depois? Acredito que a partir de agora já existem caminhos para que atleta não fique tanto tempo sem trabalhar por ter sido flagrado pelo uso de drogas recreativas.

Essas são algumas das reflexões propostas por Vinicius Loureiro Morrone, advogado especializado em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.

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Para a WADA, caso um atleta faça uso das substâncias de forma social, sem objetivar ganho de performance esportiva, o que deve ser priorizado é a saúde do atleta, não mais impor uma sanção esportiva. Neste sentido, entendem que a prática esportiva e a continuidade da atividade profissional possuem papel importante. E esse novo posicionamento encontra respaldo em vários casos famosos, como o do atleta Jobson, suspenso reiteradamente em razão de resultados adversos em exames de controle de dopagem.

A nova norma proposta prevê que casos como esse serão passíveis de punição com advertência, ao invés de suspensões que usualmente superavam 2 anos. É aí que as discussões começam a ficar interessantes. O primeiro ponto é: se já há o reconhecimento de que a suspensão em razão do uso de substâncias recreativas sem a intenção de ganho esportivo é danosa à saúde do atleta, por que não se combate esse problema imediatamente? Aguardar mais um ano para implementar uma medida que não só garantirá seu direito ao exercício profissional, mas também que potencialmente afetará de maneira positiva sua saúde e mesmo sua inserção social.

Não podemos nos deixar cegar pelo mundo multimilionário do futebol da primeira divisão. O universo esportivo é muito mais amplo e, em muitos casos, a prática esportiva é fundamental para que o indivíduo se integre socialmente e não acabe se envolvendo com práticas extremamente danosas. Um exemplo claro é o paradesporto. Para muitos para-atletas, a prática esportiva é mais do que um meio de subsistência, mas uma porta para a reintegração social e para a restauração da autoestima. Afastar da prática esportiva um para-atleta em razão de consumo de drogas sociais sem o objetivo de ganho esportivo não se justifica em qualquer dimensão. Deixar de aplicar a nova norma imediatamente, especialmente nesses casos, não se justifica sob nenhuma hipótese.

Mas a discussão não para por aí. Ao definir uma data específica para a vigência da nova norma, com uma diferença tão grande entre as punições previstas pode gerar o absurdo de um atleta com resultado adverso no dia 31 de dezembro ser suspenso por 2 anos e um atleta com resultado adverso no dia 01 de janeiro ser apenas advertido. O exemplo, extremo, apenas destaca que não é viável admitir um erro e definir uma data tão distante para solucionar o problema.

Ainda que o Brasil seja signatário da Convenção Internacional contra o Doping no Esporte, não é possível admitir que, reconhecido e exposto um problema que atenta contra a saúde e a liberdade laboral do indivíduo, dois direitos consagrados na Constituição Federal, a solução não seja aplicada imediatamente. A autonomia das entidades desportivas não pode ser alegada em um caso como esse, sendo absolutamente possível (para não dizer que é impositiva) a interferência estatal.

Por fim, a discussão mais interessante do ponto de vista teórico: é aplicável a novatio legis in mellius ao direito desportivo? Tanto a Constituição Federal (em seu artigo 5º, inciso XL) quanto o Pacto de San José da Costa Rica (em seu artigo 9º) dispõe que não haverá retroatividade da norma penal, a menos que seja para beneficiar o réu. Desta forma, é fundamental iniciarmos uma pequena discussão sobre o que é norma penal.

Historicamente, Direito Penal e Direito Criminal eram considerados apenas uma diferença de terminologia, podendo também ser chamado de Direito Repressivo, Direito Restaurador ou Direito Sancionador. Todas estas terminologias surgiram para tentar explicar de maneira melhor dimensões distintas daquele direito que, em sua origem, era responsável por apenar atos criminosos das mais variadas espécies.

As penas surgiram com os primeiros grupos sociais, ainda na pré-história[1]. Para que a vida se tornasse possível em um ambiente coletivo, os indivíduos tiveram que abrir mão de parte de sua liberdade, e aqueles que infringiam limites impostos eram punidos pela coletividade. Ao longo dos milênios, as normas punitivas se desenvolveram, passando por normas mais famosas, como o Código de Hamurabi, ou menos famosas, como o Código de Manu.

No início da Idade Média, as normas passam a se desenvolver de maneira mais estruturada, com previsão de formalidades para julgamento e racionalidade probatória. Naquela época, os procedimentos criminais eram em sua maioria privados, cabendo aos representantes do Estado ou da Igreja (dependendo da região) apenas o papel de fiscalização da regularidade dos procedimentos adotados durante os julgamentos.

Com o fim da Idade Média e a chegada da Idade Moderna, uma nova visão do sistema passou a ganhar força. Nesse momento, começam a se estruturar os instrumentos penais estatais, como forma de combater a criminalidade que, àquela época, era bastante elevada. Desde então, falar em direito penal ou direito criminal se tornou sinônimo.

No entanto, os contextos jurídico e social atuais são significativamente mais complexos do que aqueles observados após a Revolução Francesa. As normas, que originalmente podiam ser divididas em cíveis ou criminais, abrangem uma variedade incontável de situações, muitas das quais podem conter características diversas, e naturezas diversas.

A aplicação de penas está fortemente ligada ao direito criminal, uma vez que de uma maneira geral as sanções pelo cometimento de um crime estão ligadas à restrição de direitos do réu. Em geral, sentenças condenatórias podem restringir direitos com duas finalidades principais: a primeira é reparar ou indenizar danos causados, o que em geral representa limitações a direitos patrimoniais; a segunda é a limitação com a finalidade de punição em razão de descumprimento de normas previstas. Neste último caso, a restrição de direitos pode atingir não apenas direitos patrimoniais, mas também direitos imateriais, como o direito à vida, a liberdade de ir e vir ou ao exercício profissional. Uma pena, enquanto punição a uma ação considerada socialmente condenável, pode ser aplicada em diversos casos, não apenas em infrações criminais.

Especialmente se analisarmos a estrutura atual dos sistemas jurídicos e a complexidade das normas, as normas punitivas estão amplamente espalhadas, não se concentrando mais nos códigos criminais. Entender a natureza penal das normas punitivas é uma forma relevante de proteção dos direitos. Neste sentido, uma norma penal pode não estar ligada diretamente ao direito criminal, ainda que essa definição prevaleça na doutrina até os dias de hoje.

Quanto mais complexo se torna o sistema jurídico moderno, mais relevante se torna a diferenciação entre Direito Penal e Direito Criminal, sendo o primeiro mais amplo que o segundo. Toda decisão condenatória que limita o livre exercício de direitos em razão de violação de normas com finalidade meramente punitivas deve ser considerada uma norma penal, seja ela criminal ou não, uma vez que prevê a aplicação de uma pena específica para a prática de uma atitude específica. Mais do que isso, prevê a limitação de um direito que pode ser limitado apenas por atuação Estatal e que, dada a natureza de tal direito, deve obedecer a uma série de regras específicas criadas para evitar que tais direitos sejam limitados de forma equivocada.

Com relação às normas criminais não há qualquer dúvida: lei superveniente mais benéfica ao réu deve ser aplicada em seu favor. No entanto, quando se analisa o conceito amplo de pena, privar alguém do exercício profissional e da prática esportiva formal em razão de infração disciplinar pode perfeitamente ser enquadrada neste conceito proposto de norma penal. E, enquanto norma penal, deve também ser aplicada de forma retroativa a nova norma mais benéfica.

Sendo assim, mesmo que as infrações sejam cometidas ao longo do ano de 2020, se aplicadas as normas mencionadas acima e a novatio legis in mellius for considerada, a partir de janeiro de 2021 nenhum atleta deverá ficar suspenso em razão do uso recreativo de drogas sociais. Mais que isso, além de inconstitucional como discutido anteriormente nessa coluna, a aplicação de suspensão preventiva nesses casos pode representar a aplicação de uma pena em infração cuja pena prevista não é de suspensão.

Se as novas normas forem realmente aplicadas como deveriam, os atletas finalmente poderão dizer que um tapinha não dói.

[1] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1764. Madrid, Altaza, 1994.

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.