Topo

Por que projeto de lei que pode barrar Tifanny já nasce inconstitucional

Andrei Kampff

04/04/2019 12h00

Projeto de lei de deputado estadual de SP barraria, por exemplo, a presença de Tifanny na Superliga feminina. Foto: Ayrton Vignola/Fiesp

Antes de mais nada, entenda.

A Constituição Federal garante, no artigo 217, autonomia às entidades esportivas. Ou seja, as associações, federações, clubes e etc… cuidam do que é delas. Não cometendo crime previsto em Lei, são responsáveis por seus campeonatos, atletas e regras.

Sobre transgêneros no esporte também é importante saber: a Justiça esportiva tem debatido e estudado demais a questão no esporte. Inclusive tratamos disso já aqui no nosso blog.

Ao fato.

Um projeto na Assembleia Legislativa paulista quer proibir transgêneros em partidas oficiais no estado de São Paulo. Além de contrariar um princípio de Direitos Humanos, o da não discriminação, quer legislar sobre aquilo que NÃO é competência do estado.

Todos sabemos que o Poder Legislativo tem a prerrogativa de legislar.  Claro que nossos legisladores (vereadores, deputados, senadores) não precisam ser advogados, nem especialistas em leis. Agora, eles têm verba para contratar funcionários. Seria muito importante que pelo menos um desses funcionários entendesse do assunto e prestasse a devida assessoria.

VEJA TAMBÉM:

Repito, a questão está sendo muito debatida e discutida no esporte. Por gente que entende, vive e estuda o esporte. Intervenção do estado nessa área não me parece ser o caminho adequado.

Entenda a discussão que acontece em São Paulo na reportagem de Thiago Braga.

______________________________________________________________________

Se o Projeto de Lei 346/2019, do deputado estadual Altair Moraes (PRB-SP), que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no estado de São Paulo, for aprovado, a lei já vai nascer inconstitucional.

"Este PL não deveria nem passar pela Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa. O inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante a autonomia das entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento. Esse projeto de lei fere as resoluções da ONU e da Unesco, das quais o Brasil é signatário. Esse é um problema de direito constitucional e de direito internacional", analisou o advogado Wladimyr Camargos, especialista em direito desportivo.

O projeto, que ainda não tem data para ser votado no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo, veta a participação de transexuais em qualquer modalidade em equipes que correspondam ao sexo oposto ao de nascimento. Quem não cumprir a lei será multado em 50 salários mínimos. O projeto entrará em vigor 180 dias depois de aprovado.

Na tribuna da Assembleia Legislativa, o deputado defendeu o projeto. Segundo Altair Moraes, "trata-se de uma questão fisiológica, tendo em vista que a formação do corpo masculino é diferente da do corpo feminino".

"No campo do direito internacional dos direitos humanos, os Princípios de Yogyakarta estabelecem que os Estados devem garantir que todos os indivíduos possam participar de esportes sem discriminação em razão de orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais", afirma o advogado especialista em direitos humanos Vinicius Calixto, autor do livro "Lex Sportiva e Direitos Humanos", que contém um capítulo sobre as políticas esportivas para atletas transgêneros.

Segundo ele, uma lei como essa, se aprovada, pode provocar uma série de sanções a quem cumpri-la.

"Os clubes e as entidades de São Paulo podem ser punidos e podem ficar de fora das competições nacionais e internacionais. Pode haver retaliações do sistema esportivo", avalia Calixto.

Se o projeto de lei for aprovado, vai impactar diretamente a atuação da jogadora Tifanny Abreu, do Sesi Bauru. Tifanny, 33, é a primeira atleta transgênero a ter autorização para disputar a Superliga. Ela foi liberada pela Federação Internacional de Vôlei (FIVB) para atuar na competição após passar por cirurgia de mudança de sexo. Até os 31 anos, Tifanny participou de várias edições do torneio masculino no Brasil, além de torneios na Europa e na Ásia.

Nas quartas de final desta edição da Superliga, Tifanny foi envolvida em uma polêmica com o técnico Bernardinho, do Sesc-RJ, eliminado do torneio, após flagra de frase dita pelo treinador depois de um ponto de ataque da jogadora: "Um homem, é f…!". Bernardinho pediu desculpas a Tifanny no dia seguinte e alegou que estava falando sobre o gesto técnico da jogadora, e não da sua força.

"Nesse tipo de situação, o que nós vemos é a Lex Sportiva ao lado das normas dos direitos humanos, do respeito, enquanto o Estado tenta aprovar uma lei discriminatória. O esporte pode ter um papel fundamental na defesa e na promoção dos direitos humanos, e esse tipo de situação evidencia isso", diz Calixto.

Um caso que ficou famoso pela pressão da opinião pública contra uma lei considerada preconceituosa foi o do All-Star Game da NBA em 2017. O final de semana do jogo das estrelas da principal liga de basquete do mundo estava marcado para Charlotte, mas foi levado para a cidade de Nova Orleans depois que o Parlamento do estado da Carolina do Norte aprovou uma lei que proibia pessoas transgênero de frequentarem os banheiros com os quais elas se identificavam. Depois de um intenso boicote ao estado, a lei foi revogada. Neste ano, o All-Star Game foi, enfim, realizado em Charlotte.

Este blog tentou entrar em contato por diversas vezes ao longo do dia de ontem com o gabinete do deputado Altair Moraes para comentar o projeto de lei, mas não obteve sucesso. Em entrevista recente ao jornal O Dia, Moraes afirmou que quer manter os princípios individuais e coletivos no esporte.

"O Projeto 346/2019, que propôs o sexo biológico como único critério definidor do sexo competidor para fins de escalação em equipes femininas ou masculinas, é apenas um dos vários projetos que estou elaborando a fim de trazer moralidade às partidas para benefício dos clubes, atletas e torcedores", alegou Moraes.

O PL 346/2019 está em andamento e seguirá o trâmite comum da Assembleia Legislativa. Caso aprovado, seguirá para sanção ou veto do governador João Doria (PSDB).

Para Wladimyr Camargos, se o projeto for aprovado, haverá uma grande batalha jurídica. "O meio para derrubar essa lei será uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Primeiro no Tribunal de Justiça de São Paulo, podendo se arrastar até o Supremo Tribunal Federal (STF)", finalizou.

Por Thiago Braga

 

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Por que projeto de lei que pode barrar Tifanny já nasce inconstitucional - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.


Lei em Campo