É muito mais do que uma questão de hormônio. É sobre direitos e princípios
Andrei Kampff
12/05/2019 11h00
Este espaço tem tratado muito sobre o assunto. E deve voltar a falar mais algumas vezes.
A questão é muito importante e vai além de um nome, apesar de o nome em questão ser duas vezes campeão olímpico no atletismo.
Caster Semenya produz mais testosterona que a imensa maioria das mulheres.
Esse desenvolvimento é natural e se chama hiperandrogenismo.
Um atleta que apresenta desenvolvimento sexual diferente de outro pode ser proibido de competir?
Uma vertente dos pensadores do esporte entende que isso a deixaria em vantagem competitiva, portanto, ela teria que ser proibida de competir até que tomasse uma medicação para reduzir o nível do hormônio no corpo.
É o entendimento da Federação Internacional de Atletismo, a IAAF.
Para a entidade, Semenya teria vantagem, e isso fere princípio caro ao esporte, o da Paridade de Armas, ou seja, condições de igualdade para garantir a incerteza de resultado, essência do esporte.
Mas a atleta alegava discriminação. Ela não era responsável pelo que seu corpo produzia naturalmente. Como o espírito olímpico também não aceita discriminação, a briga jurídica é grande.
O Tribunal Arbitral do Esporte, o TAS, deu razão à IAAF. E claro que isso repercute pelo mundo.
Importante saber o que pensa sobre o assunto o professor português Alexandre Mestre, um dos principais pensadores do direito esportivo no mundo e colunista do Lei em Campo.
Para mim, tal viola a reserva da vida privada. Põe em causa a autodeterminação da identidade do gênero e expressão do gênero. Coloca em crise o direito à proteção das características físicas/sexuais. Afronta o direito ao livre e pleno desenvolvimento da personalidade humana, inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Estigmatiza, marginaliza atletas que, pela sua condição física, são mais vulneráveis, no desrespeito pela dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Olimpismo, constante da Carta Olímpica.
Afronta o direito ao desporto, ao restringir, a meu ver, de forma arbitrária, desproporcionada (ainda que, claro, a ética desportiva, a integridade das competições, sejam, por si, fundamentos bem razoáveis), a elegibilidade para participação de certas mulheres em determinadas competições (não todas as competições, o que também não será despiciendo…). Ora, a Carta Olímpica, texto a que as federações internacionais devem obediência, enquadra a "prática desportiva" como "um direito humano", que não deve ser objeto de "discriminação de qualquer tipo". Também a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da Unesco consagra o desporto como "um direito fundamental de todos", dando na sua nova versão ainda mais enfoque a esse direito no prisma do princípio da igualdade, na vertente da não discriminação.
Mais: há aqui uma discriminação em razão do gênero, em regras que se focam na elegibilidade … das mulheres, em competições … de mulheres, no hiperandrogenismo … feminino. Ora, uma das mais importantes convenções de direitos humanos da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, prescreve que a igualdade entre homens e mulheres pressupõe as mesmas possibilidades de participar ativamente nos desportos.
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.