Decisão do STF que pune homofobia deve chegar ao esporte
Andrei Kampff
16/06/2019 12h03
É fundamental entender que não existe crime/delito sem lei anterior que o defina.
Homofobia não tem sido punida no esporte por não haver regra que tipifique essa conduta. Mas, recentemente, o STF mudou essa realidade ao aprovar o uso da Lei do Racismo para punir condutas homofóbicas.
A decisão traz uma série de discussões, inclusive jurídicas. O Poder Legislativo, com perdão da obviedade, é quem deve legislar. Então, pode o órgão máximo do Poder Judiciário legislar no silêncio de quem tem a competência constitucional para isso? O STF decidiu que pode.
A Constituição já confere ao Supremo o poder normativo nas ações declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e nas súmulas vinculantes. Mas o importante aqui é entender os reflexos dessa decisão na esfera esportiva.
No esporte, injúria racial tem sido punida com base no art. 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que trata de atos discriminatórios. A determinação do Supremo não implica a punição imediata de atos homofóbicos, mas abre espaço para a Justiça esportiva também punir.
Claro que a falta de previsão legal e a consequente não punição contribuem para para um ambiente homofóbico e preconceituoso. Isso inibe e constrange pessoas que gostam, vivem e participam do esporte.
A decisão do STF pode trazer mudanças significativas de comportamento, que ajudarão a tornar o esporte ainda mais inclusivo e plural. A Ivana Negrão e o Lei em Campo conversaram com especialistas no assunto e contam como a decisão do STF vai influenciar no mundo esportivo.
O uso da lei para calar o grito do preconceito
Na última quinta-feira (13), o Supremo Tribunal Federal, por 8 votos a favor e 3 contra, aprovou o uso da Lei do Racismo para punir crimes contra a homofobia. O julgamento começou em fevereiro deste ano e a Corte se manifestou em razão da falta de ação do Congresso Nacional em relação ao tema.
A partir da publicação da ata do julgamento, a Lei Nº 7.716/89, que delibera sobre os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, passa também a reger práticas e condutas discriminatórias em relação a orientação sexual. No texto aprovado, a determinação é válida até que leis específicas sobre o tema sejam criadas.
O advogado, especialista em direito esportivo, Vinícius Calixto, afirma que a decisão visa "abarcar um grupo que estava excluído, também na esfera esportiva". O mundo do esporte, especialmente o do futebol, é "altamente machista e homofóbico". Por isso, Vinícius considera a decisão "uma vitória, um caminho que pode reverberar". Sem uma regulamentação sobre o tema, manifestações homofóbicas ficavam impunes. Embora o racismo ainda exista, mesmo com as leis, as vítimas de injúria e difamação por raça ou cor (e agora por orientação sexual) podem denunciar, pelo menos na esfera criminal.
E na esfera esportiva? O entendimento do STF não necessariamente passa a vigorar neste âmbito, o que significa que o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que trata de preconceito e atos discriminatórios, não passa a valer automaticamente para punir a homofobia no futebol. Paulo Salomão, presidente do STJD lembra que o Tribunal não pode alterar o Código, mas, "a decisão do STF pode ser embasadora".
A Copa do Mundo no Brasil, em 2014, provocou onda de manifestações homofóbicas nos estádios do país, até depois do torneio. Em 2015, o STJD arquivou um inquérito e optou por aguardar a análise do STF a respeito da criminalização da homofobia. Naquela época, o tema já era discutido na última instância do Judiciário. Paulo Salomão foi o responsável pelo processo que investigou denúncia de atos homofóbicos no clássico entre Corinthians e São Paulo. No jogo do Campeonato Brasileiro, na Arena Corinthians, em setembro de 2014, a torcida do time da casa gritou "bicha" enquanto o goleiro Dênis batia o tiro de meta. "Além de não ter um entendimento de criminalização da homofobia, naquele momento, os árbitros e o próprio goleiro disseram que não se sentiram ofendidos com o ocorrido. Assim, o Tribunal entendeu que era melhor esperar o STF", lembrou o hoje presidente.
Paulo Salomão acrescenta que "esse tipo de conduta deve ser avaliada e extirpada dos estádios. Antes, era aceito. Hoje é intolerável. É preciso mudar". Mas, na última sexta-feira, no Morumbi, a torcida brasileira voltou a agir de tal forma, ao gritar "bicha" enquanto o goleiro Lampe Porras, da Bolívia, se preparava para repor a bola no jogo de abertura da Copa América 2019.
"A não possibilidade de punição e ausência de dispositivo legal sempre contribuiu para esse ambiente homofóbico", avalia Vinícius Calixto. Para mudar esta realidade, Paulo Salomão defende que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva se posicione e "informe aos clubes que eles estão passíveis de punição, diante deste tipo de comportamento por parte da torcida". A FIFA, por sua vez, tem sido enérgica nestes casos e vem punindo as federações dos países envolvidos em manifestações homofóbicas.
Alguns clubes brasileiros, no entanto, já andam na contramão da intolerância. Entre eles, o Esporte Clube Bahia vem ganhando destaque. Desde que assumiu a presidência, com o discurso de que o Bahia é mais que um clube, Guilherme Bellintani criou o Núcleo de Ações Afirmativas. Composto por funcionários e torcedores, o NAA vem pensando e realizando ações em defesa e publicidade das minorias. Em 17 de maio de 2018, dia da luta contra a LGBTfobia, o time baiano publicou foto de um assistente com a bandeira colorida e o tema "Não há impedimento", e chegou a ganhar prêmio. Desde, então, outras campanhas vêm tendo destaque como o "Novembro Negro", "Abril Indígena" e as camisas temáticas. A peça mais vendida da coleção é aquela que faz referência ao combate à homofobia.
Nelson Barros Neto, gerente de comunicação do Esporte Clube Bahia, diz que outros clubes têm procurado o tricolor da boa terra para a realização de campanhas conjuntas. "Internacional, Grêmio e Ceará, com quem jogamos as últimas partidas, nos procuraram e fizemos ações, como a troca de mudas de árvores ao invés de flâmulas em alusão à Semana do Meio Ambiente".
Os times têm muitos seguidores nas redes sociais. Atraem mídia. Portanto, podem se fazer ouvir e assumir essa responsabilidade social. Que essa corrente se fortaleça!
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.