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Primeira conquista da Copa América foi de branco, e teve negro como craque

Andrei Kampff

10/07/2019 13h00

O futebol é rico em histórias. Algumas precisam ser lembradas, mesmo que sejam manchadas pela vergonha.

O Brasil jogou de branco na estreia da Copa América deste ano para homenagear a primeira conquista na competição. Em 1919, no estádio das Laranjeiras, de branco e com um negro como personagem principal, o Brasil bateu o Uruguai e levantou a primeira das nove taças.

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Arthur Friedenreich era o craque daquele  time. Filho de um descendente de alemães com uma brasileira negra, ele foi o artilheiro do Brasil e marcou, inclusive, o gol do título. Mesmo com o feito histórico, o Brasil se rendeu ao absurdo. 

Um ano depois, foi jogar contra a Argentina, em Buenos Aires,  e uma charge de um jornal local dizia: "Os macaquinhos já chegaram em terras argentinas". A atitude racista revoltou parte da delegação. Sete atletas decidiram não participar da partida. Mesmo assim, acreditem, a seleção entrou em campo, com o chefe da delegação e mais seis jogadores, e perdeu por 3 a 1. A história vai ficar pior.

No ano seguinte, o Sul-Americano seria disputado na Argentina. O Brasil iria defender o título. A CBD – antiga CBF  – estava preocupada com uma nova provocação argentina, e o presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, com a imagem do país no exterior. Então, na convocação da seleção, não apareceram nomes como o de Friedenreich, o herói de dois anos antes. 

Feito o registro do absurdo, vamos com a bela história do feito de Arthur Friedenreich, com uma camisa branca, sangue negro e muita bola nos pés. Quem conta é Danielle Maiolini, advogada especializada em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.

 


 

O alívio de quem não perdeu

Até quem estava de fora do estádio via a importância do futebol. Não era nem o caso de se pensar sobre as coisas que antecederam tudo acontecer, porque era como se o mundo começasse ali, e não houvesse nada de antes que valesse a pena ser contado.

Desde 19, quando o Fried "el tigre" marcou o gol da vitória contra o Uruguai, "e o doutor Mario Rachê se abraçou, chorando, a um inglês velho, que nunca vira mais magro ou mais gordo". O Brasil batia o atual bicampeão da América na Sul-Americana e o coroavam o novo dono do continente. Jogavam só Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, é verdade. Ainda assim, era o nosso primeiro título de relevantes dimensões extraterritoriais. Conquistado em casa, na prorrogação. E o brasileiro ficava maior que o Brasil. Se o nosso mundo era a América, como a copa veio a se chamar depois, pela primeira vez, éramos os melhores. 

Junto com isso, e também não era o caso de se desprezar, acontecia algo fantástico. O país do branco, de uniforme branco, com um gol do preto. Começava a não se importar com a cor de quem colocava a bola pra dentro. Provado o gostinho daquele sentimento vitorioso, pouco a pouco, o critério pra estar em campo passava a ter que ver com balançar a costura da rede, quem quer que fosse o dono do pé. Foi uma coisa que aconteceu também junto com o começo dos tempos em que o futebol foi virando menos diversão pra quem joga e mais pra quem vê. E, como quem vê vitória sente uma vez o que quer sentir de novo, dos tempos em que ganhar virava obrigação. 

Naquele 19, a comoção foi tamanha que, nessa época, constatavam algo curioso. Diriam que, na ausência de envolvimento do Brasil em guerras, era o futebol quem despertava as emoções e os sentidos do sentimento nacional que em outros lugares só se alcançava em situações próprias do conflito bélico. Situações próprias da peleia que, aqui, não se travava em trincheiras, mas entre quatro linhas. E enquanto as fronteiras da nossa identidade eram cuidadosamente forjadas, o jogador ia virando, ao mesmo tempo, herói e munição. Teve quem disse "carne de canhão". 

De 19 a 19, a cada par de anos, a herança desse centenário nos faz obrigados a reconhecer. Chegada a hora, mente quem diz que não deixa de lado a paixão clubística. Nem que seja por descuido. Pra torcer pela "escola brasileira de futebol". E, apesar da convivência quase sempre pacífica com os vizinhos fronteiriços, pela vontade de vê-los sucumbir, um a um, gol a gol. Tudo pra levantar o caneco, e não acordar menor do que dormiu. Tudo pra sentir, no mínimo, o alívio de que não perdeu.

……….

Referências bibliográficas

FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, 2003

 

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Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.


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