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Antes de "dono", futebol precisa de democracia. Torcedores se posicionam

Andrei Kampff

23/09/2019 04h00

Nem é novidade falar sobre clube-empresa no Brasil. A Lei Zico, lá em 1993, já tentava modernizar a gestão esportiva. Mas nunca se falou como agora.

É preciso cuidado, porém.

A ideia que tem sido debatida agora, do deputado Pedro Paulo, do DEM-RJ, e abraçada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, vem recheada de problemas, conforme especialistas já alertaram aqui. Entre outras coisas, ela propõe uma espécie de calote dos clubes devedores que passarem a ser empresas (20 anos para pagar e desconto de 50% da dívida).

Ou seja, a proposta, que traz um verniz de modernidade, mais parece ressuscitar velhas práticas que nunca contribuíram para alimentar políticas de boa governança e transparência na gestão esportiva.

Mais importante do que discutir a natureza jurídica de nossos clubes é cobrar dos dirigentes que eles se comprometam com uma gestão profissional, comprometida com responsabilidade administrativa, ética e mecanismos de integridade.

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É nessa linha que um grupo significativo de torcedores de vários clubes se manifestou contra a ideia debatida por Maia. O ponto central do discurso é : "precisamos de democracia, não de donos".

Ou seja, além de sofrer resistência do movimento esportivo, de pensadores do direito, a proposta em construção recebe agora críticas de torcedores.

Thiago Braga conta essa história.

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Corre na Câmara dos Deputados um projeto que vai conceder benefícios aos clubes que optarem por virarem empresas. Mas mesmo antes que o projeto vire mesmo lei, grupos de torcedores espalhados do país já começaram a debater se a mudança é mesmo benéfica. Para isso, eles estão se reunindo e vão organizar o Encontro Nacional pelo Direito de Torcer, nos dias 15 a 17 de novembro, em Porto Alegre, para discutir basicamente maior transparência e democracia na administração dos clubes brasileiros.

"Tem que fazer com que o quadro regulatório permita que as associações civis sejam democráticas, que tenham transparência, que dirigentes que cometerem malfeitos sejam punidos. Aproveitar os instrumentos que a gente tem hoje e aprimorá-los. Os dirigentes de fato terem responsabilidade pelo que eles fazem. O Flamengo tem uma Lei de Responsabilidade Fiscal que implica diretamente os dirigentes. Isso foi uma vitória da transparência que a gente acredita que deveria ser reproduzido em outros clubes", defende o produtor David Butter, sócio-proprietário, conselheiro do Flamengo e membro do "Flamengo da Gente", grupo de aproximadamente 250 pessoas que tenta preservar a matriz popular do clube e participar ativamente da política rubro-negra, inclusive acompanhado de perto o caso do incêndio no Ninho do Urubu, ocorrido em fevereiro deste ano e que vitimou dez atletas das categorias de base do clube.

Para esses torcedores que estão se mobilizando em todo o país, o primeiro passo é que eles possam participar do processo.

"O futebol brasileiro, na nossa concepção, pertence ao povo brasileiro, ou deveria pertencer. E a gente reivindica como tal. Cada clube pertence à sua torcida. Um clube de futebol jamais poderia aderir a uma transformação tão grande e tão radical como essa sem um amplo debate com a sua torcida, um debate verdadeiro e democrático. Na nossa opinião é um completo absurdo, inimaginável que uma discussão tão importante como essa esteja sendo feita sem audiências públicas, em que a torcida seja chamada a participar. Deveriam estar fazendo audiências públicas em Porto Alegre, em Belo Horizonte, São Paulo, Salvador, Recife, chamando a torcida a participar. É o mínimo que se espera para discutir algo tão importante. A gente não acredita que esse mecanismo de participação vai surgir da boa vontade, por isso que a gente se organiza para reivindicar essa participação", argumenta Ivandro Morbach, o Latino, membro do grupo "O Povo do Clube", de torcedores do Internacional.

Segundo eles, os torcedores que fazem parte do grupo pelo Direito de Torcer têm estudado os modelos de clubes-empresas espalhados pelo mundo. E a conclusão é de que não há solução única que vai beneficiar todo mundo que aderir à transformação.

"Nossa oposição não é ao projeto 'a' ou 'b'. Nossa oposição é ao espírito que embala essa tentativa de transformação. A gente vê no clube-empresa uma agressão frontal à democracia no seio dos clubes. Tanto no sentido de participação de decisão como em transparência, capacidade de fiscalização que sócios e torcedores têm no contexto da associação civil. Se hoje a gente tem um futebol que no geral permanece como sociedade civil dominados por cartolas, oligarquias e pequenos clubes dentro do clube, a gente considera que no clube-empresa essa situação vai se radicalizar. Porque esses 'donos' que hoje existem vão ter instrumentos para se tornarem donos de verdade. Essa é a preocupação grande que a gente tem, que o clube-empresa sirva de vez para consolidar oligarquias no comando dos clubes. Quando a gente considera que é essencial incluir mais gente nesse processo, mais olhos, mais mãos, mais perspectivas. O clube-empresa fecha muito essa janela, na realidade. Isso não é algo só inspirado a partir de uma impressão, de uma futurologia sobre o Brasil. A gente olha para fora, para uma série de casos, histórias de horror, onde a gente não encontra nenhuma evidência, nenhuma indicação, a não ser uma miragem sendo muito bem construída tanto por elementos políticos como gente que está interessada nesse trâmite todo, de que essa situação do clube-empresa no Brasil em contraste com qualquer lugar do planeta vai resultar frutos para pequenos e grandes. Não é verdade. Não é verdade", adverte Butter.

Em Portugal há o caso clássico do Belenenses. Em 2012, o tradicional Belenenses resolveu ceder 90% de seus ativos para a Codecity Sports Management. O clube se protegeu e estipulou três períodos de recompra das ações, caso fosse de seu interesse.

Porém, em 2016, os sócios do clube tentaram fazer a retomada do futebol do Belensenses, mas a empresa não concordou com os termos. A Justiça portuguesa deu ganho de causa à empresa. Os sócios, então, resolveram criar um novo time, começando tudo do zero. Para os grupos que defendem que os clubes não virem empresas, tudo passa por uma maior participação popular.

"Sobre o modelo ideal de administração, a nossa opinião é a torcida soberana, nossos clubes não são democráticos. A maioria dos clubes ostentam grandes números de sócios-torcedores, mas esses sócios não têm direito a votar em seus clubes. Não é essa salvação mágica que estão propondo, como se transformar o clube em empresa fosse uma cachoeira da purificação, aí está tudo resolvido, os clubes vão disputar títulos com os europeus. Isso não existe. Precisa ter uma real chance de renovação e rodízio no poder. Não existe essa democracia", afirma Morbach, citando o Internacional como um ponto fora da curva em termos de democracia. "O Inter tem 126 mil sócios que têm direito a votar e a ser votado, basta ter dois anos de associação e estar em dia que pode ser eleito conselheiro."

Segundo Morbach, foi essa participação dos sócios que permitiu que o clube tomasse uma atitude corajosa recentemente, quando o Ministério Público instaurou inquérito para apurar crimes de apropriação indébita, estelionato, organização criminosa, falsidade documental e lavagem de dinheiro durante a gestão 2015/2016 do clube.

"Na gestão 2015-2016, os dirigentes dos clubes cometeram gestão temerária e toda essa bagunça, essa gestão catastrófica, acabou rebaixando o clube em 2016. Se não fosse o Inter um clube com democracia, a grande maioria dos dirigentes não seriam punidos internamente. As contas foram reprovadas pelo Conselho Deliberativo e esses dirigentes acabaram sendo expulsos do clube. Sem democracia não existe transparência. E isso garante que as más práticas de gestão vão se perpetuar nos clubes", falou.

Além de todas as críticas aos modelos propostos e aos modelos espalhados mundo afora, uma outra preocupação toma conta dos torcedores que participam pelo movimento: o interesse de quem está por trás da discussão.

"A gente tem sempre que desconfiar das propostas que vem das velhas raposas, das oligarquias dos clubes, de gente que levou seus clubes à beira da bancarrota, comandando pequenos grupelhos que levaram os clubes ao limite. Agora eles apareceram querendo propor uma solução que vai salvar o futebol brasileiro? Difícil", finalizou Butter.

O deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) trabalha em uma segunda minuta para poder votar o projeto em outubro deste ano.

Por Thiago Braga

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Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.


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