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Com PL do clube-empresa, multas rescisórias podem ser discutidas na Justiça

Andrei Kampff

27/09/2019 04h00

Um dos pontos que estão travando a discussão do projeto de lei que facilita a mudança de clubes do modelo de associação civil para o modelo de clube-empresa diz respeito aos salário dos atletas. A proposta do relator do projeto, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), é que o atleta que receber mais de R$ 23.600 mil mensais, ou quatro vezes o equivalente ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), não precisará mais de registro na carteira do trabalho. Bastará ter um contrato entre as partes de acordo com o Código Civil.

O problema é que essa previsão, se for adotada, pode alterar, ou no mínimo gerar questionamentos jurídicos, em relação ao valor da multa rescisória dos jogadores que receberem mais de R$ 23.600 mil. Isso porque o artigo 412 do Código Civil fala que "o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal". Os clubes precisam se movimentar para não perder uma das maiores fontes de receita das agremiações no Brasil.

"Se efetivamente passar a ser regido pelo Código Civil, a obrigação, nesse caso, é o valor do contrato. O que tiver posto no contrato, ele que vai ser a base de cálculo da cláusula penal", esclarece a advogada e doutora em Direito Civil Carolina Xavier da Silveira Moreira.

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Um exemplo hipotético. Um atleta com salário mensal de R$ 30 mil e contrato de 3 anos (36 meses). O valor total a ser pago pela obrigação de prestar serviço seria de 36 x R$ 30 mil, o que dá R$ 1.080 milhão. Mesmo que ele receba mais R$ 90 mil de 13º salário, chegaria no valor de R$ 1.170 milhão. Então, a multa máxima para esse atleta pagar se resolver não cumprir o contrato seria de R$ 1.170 milhão, uma vez que o valor não pode exceder a obrigação principal, conforme o artigo 412 do Código Civil. Pela regra estabelecida pelo artigo 28 da Lei Pelé, a multa máxima de um atleta com salário de R$ 30 mil é de R$ 60 milhões. Ou seja, uma diferença de quase 60 vezes.

"Toda lógica de proteção do vínculo do jogador com o clube hoje está na cláusula indenizatória desportiva, que é o valor que se paga, de até duas mil vezes, o valor do salário do atleta se ele quiser rescindir antes do prazo. Se eu passo a ter um artigo, prevendo que eu vou ter um atleta que não tem salário, porque não tem relação de emprego, eu não consigo aplicar o artigo 28 da Lei Pelé, que fala da cláusula indenizatória. Então, parecem que estão imaginando uma economia. Se você acha que está contratando uma pessoa sem vínculo, mas ela tem pessoalidade, subordinação, onerosidade, pela regra geral da CLT, ela vai ser empregada. Ela pode não ser empregada desde que ela não tenha relação de emprego. Mas se ela é subordinada, ela é empregada", argumenta o advogado Carlos Eduardo Ambiel, especialista em direito trabalhista.

Embora ainda não haja consenso sobre qual será o entendimento da Justiça a partir do momento em que os contratos de quem ganha mais de R$ 23.600 mil por mês, é certo que a inclusão deste dispositivo no projeto de lei vai gerar insegurança jurídica.

"Na verdade, tudo dependerá do que a lei estipular. Mas especificamente quanto a isso, não vejo que o dispositivo do Código Civil por si só gerasse o fim da multa rescisória, dado o princípio da especificidade da lei desportiva. Mas concordo que pode gerar questionamentos. O direito de ação é livre. Logo, qualquer um poderá lançar mão da tese e discuti-la judicialmente. Mas isso não quer dizer nada. Acho muito hipotético por enquanto", afirma o juiz do Trabalho titular da 13ª Vara do Trabalho do TRT do Rio de Janeiro, Ricardo Miguel.

Na reforma trabalhista, aprovada em 2017, empresas e trabalhadores receberam a opção de renegociar ou flexibilizar direitos trabalhistas. Mas só podem ser considerados hiperssuficientes os profissionais com diplomas universitários e remunerações acima de R$ 11.600. relator do projeto, Pedro Paulo pretende flexibilizar as regras de contratação de atletas para clube-empresa, permitindo contratar atletas em regime de hiperssuficiência mesmo que não cumpram o requisito do diploma. Mas os clubes se movimentam para mudar a redação deste ponto no projeto de lei.

"Pode ser [que jogadores se beneficiem na hora de pagar a multa], mas isso eu diria que é ir um pouco longe. Não foi levantado esse ponto. O que foi dito pra ele [Pedro Paulo] é que seria uma criação que geraria muitos problemas, sobretudo criaria uma bolha trabalhista, que estouraria nos clubes. Ou seja, ao invés de ajudar, atrapalharia. A ideia é reescrever a parte trabalhista. Vamos começar a consolidar algumas sugestões e mandaremos o texto para ele na semana que vem. O texto sugerido não deve passar", contou o advogado André Sica, membro da comissão da CBF para análise do projeto.

A ideia dos congressistas que estão à frente do projeto é entregar um texto que tenha uma ampla maioria de apoio e que preferencialmente não tenha veto. Coautor do projeto, o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) argumenta que a questão da relação trabalhista ainda não está totalmente definida.

"Esse valor ainda tem que ser discutido. Primeiro, colocar claro que isso seja dado como opção. Dar a liberdade de opção contratual pode representar uma economia ao clube e pode ser compartilhada com o atleta, com um contrato mais generoso [para o atleta]. Essa liberdade contratual precisa existir a partir de um certo valor. Quando o atleta é iniciante, que ganha salários menores, não se pode cogitar em mexer em direitos ou flexibilizar esses direitos trabalhistas", defendeu o deputado.

"Uma coisa que nós vamos ter o cuidado de deixar bem claro é que não vamos tirar direitos trabalhistas de ninguém. Não concordo e não pretendo votar nada que pode ser entendido como inconstitucional e que possa retirar direitos trabalhistas. E o deputado pedro Paulo deixou bem claro que não quer trazer discussão de direitos trabalhistas. Dar opção de liberdade contratual para quem recebe soma vultosa é uma relação ganha-ganha. Mas sem ferir os princípios da lei trabalhista", garantiu o deputado Domingos Sávio.

A saída para os clubes é garantir que o projeto de lei venha com um dispositivo garantindo que eles não sejam lesados com relação às multas rescisórias, que representam porcentual importante no caixa dos clubes.

"É [preciso] estabelecer que não se aplica o artigo da CLT que fala da relação de emprego. É como foi feito em 2003 no caso do não-profissional de base. Ali a lei diz que não é empregado. Não sendo empregado, não pode se beneficiar da cláusula compensatória. E como fica todo o sistema de proteção e multas que o Brasil tem e que garante você não perder atletas para o exterior? Isso precisa ser abordado. Os clubes talvez não estejam raciocinando que esta mudança pode trazer uma falta de garantia nas multas que protegem a saída dos jogadores", finalizou Ambiel.

Por Thiago Braga

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Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.


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