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Mulheres nos estádios iranianos. Uma conquista que provoca uma reflexão

Andrei Kampff

29/09/2019 12h30

Na premiação de entrega dos melhores do futebol o presidente da FIFA, Gianni Infantino, anunciou que mulheres poderão assistir do estádio ao jogo do Irã contra o Camboja pelas eliminatórias para a Copa do Mundo.

A verdade é que a conquista não é de Infantino, nem da FIFA, mas de um movimento global que pede liberdade às mulheres iranianas. A FIFA entrou nessa campanha depois de anos de silêncio.

A pressão pela presença de mulheres nos estádios iranianos é grande. Elas não aceitam passivas essa restrição. Mesmo proibidas, algumas torcedoras vão aos estádios disfarçadas. Outras participam ativamente de movimentos no exterior pedindo a permissão de mulheres nos estádios, como o coletivo "Open Stadiums", criado em 2005.

A situação voltou a chocar e provocar debate no mundo depois que a torcedora Sahar Khodayari morreu no início de setembro. Ela colocou fogo no próprio corpo enquanto aguardava julgamento por tentar assistir a uma partida.

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É sempre bom destacar que os artigos 3 e 4 do estatuto da FIFA apontam o compromisso da entidade com os direitos humanos e a luta contra discriminação de qualquer tipo – explicitando a questão de gênero –, pela igualdade e neutralidade. Mas nem sempre a entidade olha para o próprio estatuto. 

No Irã estrangeiras têm acesso limitado aos jogos. Já as iranianas estão proibidas de frequentar as arquibancadas desde a Revolução Islâmica de 1979, que transformou o país em uma República baseada nos preceitos religiosos do islamismo e mudou radicalmente a estrutura social do país.

Apesar de o país contar com uma Constituição, o comportamento das pessoas é ditado pela sharia, o conjunto de normas do Alcorão. As ideias islâmicas acabam retirando direitos das mulheres, como a ida aos estádios. Sob o ponto de vista dessa corrente do islã, o ambiente do futebol causa muita exposição às mulheres, e seria um território "pecaminoso" para elas.

A verdade é que o futebol também é uma paixão no Irã. E a notícia de que as mulheres poderão assistir aos jogos das eliminatórias foi muito comemorada.

Ou seja, existe sempre a possibilidade do diálogo. Com bom senso e flexibilidade, é possível conciliar questões religiosas com o esporte, encontrando boas soluções para a sociedade. E esse diálogo só se torna possível com a mobilização de todos, das mulheres do Irã, dos movimentos sociais e das entidades esportivas. Que bom que a FIFA  ajudou  nesse diálogo.

Mas se a pressão das mulheres iranianas, apoiadas por entidades globais,  surtiu efeito, com o respeito à política universal de direitos humanos, ela também traz uma reflexão necessária a todos nós, ocidentais: também não temos que refletir sobre o tratamento dado a homens e mulheres?

É a reflexão que propõe Martinho Neves, procurador de Justiça e colunista do Lei em Campo.

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O véu da hipocrisia

No período em que ocorreram os jogos olímpicos na Grécia Antiga, era proibido que mulheres assistissem às competições, conforme relata o historiador Pausânias (115 – 190 d.C.):

"Qualquer mulher que assistisse aos jogos, ou mesmo cruzasse o rio Alpheios nos dias em que os jogos estivessem sendo realizados, poderia ser lançada pelos Elidenses do alto dos precipícios rochosos do monte Typaion."

Um fato histórico comprova o relato de Pausânias.  A viúva Kallipateira decide treinar o filho Peisirodos e levá-lo a Olimpia para competir. Disfarçou-se de instrutor masculino para entrar no estádio e viu a vitória de seu filho. Na comemoração, deixou cair o véu, mostrando a todos que era uma mulher. Foi poupada apenas por respeito a Peisirodos que se sagrara campeão olímpico, honra que erigia o ser humano ao patamar de Semideus.

Milênios se passaram e o mesmo tema se repete com impressionante semelhança. Recentemente, Sahar Khodayari desafiou a regra que proíbe mulheres nos estádios de futebol do Irã e utilizou a mesma estratégia de Kallipateira, mas seu destino infelizmente foi diferente.

Abandonando o véu islâmico e disfarçando-se de homem, ela tentou entrar num estádio para assistir à partida entre Esteghlal e al-Ain, mas foi reconhecida e presa. Ao enfrentar o Tribunal Revolucionário Islâmico de Teerã que lhe poderia impor a pena de reclusão de seis meses, Sahar é tomada pelo desespero, decide atear fogo ao próprio corpo e morre.

O caso de Sahar fez com que a FIFA se mexesse. Sob o fundamento de que seu estatuto afirma o compromisso da entidade com os direitos humanos, ela começou a pressionar a federação iraniana para permitir que mulheres frequentem estádios de futebol.

A FIFA foi inteligente. Para não tentar impor suas normas estatutárias que não tem valor no direito internacional, usa o manto dos direitos humanos, que possuem valor universal e que requerem a sua aplicação em qualquer canto do mundo. E a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento jurídico mais importante do planeta terra, não esconde a sua missão de igualar direitos entre homens e mulheres.

O poder iraniano, para fugir do âmbito jurídico, busca legitimar seu proceder por detrás do véu da religião. Refugiados sob a burca do islamismo, eles deram ao Alcorão uma interpretação ao seu feitio, alegando que o texto sagrado apregoa a desigualdade entre sexos e que ambos possuem papéis sociais bem definidos.

Ocorre que essa justificativa não é alcorânica, mas cultural e social. Basta reparar que vários capítulos do Alcorão, que sugerem a igualdade de gênero, foram renegados por quem deseja manipular a religião para fins políticos, como por exemplo, em Aya 71 sura 9 (al-Tawbah) "Os crentes, masculino e feminino, são protetores ('awliyya) um do outro".

Tanto isso é verdade que países muçulmanos como Turquia, Tunísia, Argélia, Síria e Líbano tratam as mulheres de maneira muito diferente do que Afeganistão, Paquistão, Irã e Arábia Saudita. Aliás, este último acabou por permitir a frequência feminina em arenas esportivas, embora mantenha absurdos como a pena de apedrejamento por adultério.

Mas tão preocupante quanto as barbaridades cometidas por extremistas do oriente é a reação dos hipócritas do ocidente que começaram a atirar pedras, ignorando seus próprios crimes contra as mulheres ao longo da história.

Tentando tapar com um lenço a advertência do homem de Nazaré de que só deverá atirar a primeira pedra aquele que estiver sem pecado, acabam deixando descoberta a trave que possuem em seus olhos, ao só repararem no cisco que enxergaram nos seus semelhantes.

A começar pelo incômodo fato, que poucos sabem, de que os fundamentalistas criaram sua narrativa discriminatória, não propriamente do Alcorão, mas a partir de textos ocidentais que ocultavam o preconceito contra as mulheres em supostas bases filosóficas e científicas.

Na filosofia, ainda na época de Kallipateira, Aristóteles em "A política" afirma que "a natureza subordinou um dos dois animais ao outro. Em todas as espécies, o macho é evidentemente superior à fêmea: a espécie humana não é exceção".

A crença aristotélica atravessa os séculos e encontra na idade média a figura de São Tomas de Aquino, para quem "A mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo… É um ser incompleto, um tipo de homem imperfeito".

Precisamente nesse período, quando Igreja e Estado quase foram um só, (de forma muito parecida com o que se vê hoje no Irã) os resultados não foram muitos diferentes, pois no periodo da inquisição foram levadas à fogueira mais de cem mil mulheres na denominada "caça às bruxas", numa monstruosa barbárie engendrada pelo Santo Ofício.

Ícones de suas áreas como Charles Darwin e Sigmund Freud também usaram a ciência para camuflarem seu preconceito. Enquanto Darwin disse que "a diferença fundamental entre as faculdades intelectuais de ambos os sexos é sempre superior no homem que na mulher", Freud surge com a teoria da inveja do Pênis, inferiorizando nitidamente o sexo feminino.

Na verdade, nenhuma dessas teorias restou provada pela ciência e nada mais eram do que túnicas que dissimulavam o preconceito do ocidente contra a mulher, gerando tantas discriminações que vemos até hoje, sufocadas por leis cada vez menos tolerantes com a violência contra a mulher.

Mas não raro a cobertura de verniz não suporta a pressão e a discriminação explode em assédios, crimes sexuais de todo tipo e na epidemia do feminicidio, que só no Brasil mata mais mulheres do que todos os países "extremistas" juntos…

O fato é que se levantar a cortina ninguém escapa. Até mesmo os EUA, que se gabam de sua defesa da liberdade e dos direitos humanos, não ratificaram até hoje o "Tratado Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres" da ONU de 1979, coincidentemente no mesmo ano da revolução islâmica iraniana…

Seria bom que todos os países vestissem a sua própria carapuça e olhassem bem para dentro de si mesmos, antes de tentarem resolver as mazelas dos outros e lembrassem da advertência de Swami Paatra Shankara: "A quantidade de pedras que tem para atirar nos outros coincide com a máscara e a hipocrisia inerentes". 

Pois se o véu islâmico pode escamotear ditaduras que oprimem as mulheres, o véu do Ocidente esconde um dos males mais difíceis de se combater:

A hipocrisia.

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Sobre o autor

Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.

Sobre o blog

Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.


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