Mulheres voltam a torcer no Irã, mas presença em estádios não é garantida
Andrei Kampff
15/10/2019 12h00
O Irã goleou o Comboja pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022. E não foi uma goleada qualquer, 14 a 0! Um presente para um público especial que comparecia a um estádio iraniano depois de 38 anos: as mulheres. Um feito para comemorar – a presença feminina –, mas também para mostrar que o caminho ainda está longe do fim.
A batalha de um movimento global que luta pelo direito das mulheres de poder escolher ir ou não a um jogo de futebol teve uma vitória pontual, mas já tem novos desafios pela frente.
Agora as mulheres querem poder comprar ingressos (o que só é permitido para homens), e poder também escolher onde sentar (elas tiveram um lugar determinado nessa partida pelas eliminatórias). Além disso, nesse jogo apenas 3.500 lugares foram reservados as mulheres, contrastando com mais de 70 mil destinados aos homens. Elas não querem uma limitação de presença.
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Essas restrições deixam claro que, mesmo com a presença das mulheres nesse jogo, o Irã ainda contraria o estatuto da FIFA, que proíbe qualquer tipo de discriminação. Os artigos 3 e 4 do estatuto apontam o compromisso da entidade com os direitos humanos e a luta contra discriminação de qualquer tipo – explicitando a questão de gênero –, pela igualdade e neutralidade.
Por mais que o Estatuto se refira a assuntos relacionados ao jogo, a imagem do esporte também se vê prejudicada nessa grande discussão, e por isso a FIFA trabalha com diplomacia, mas usando instrumentos de pressão para garantir o acesso das mulheres.
Depois do jogo, o italiano Gianni Infantino, divulgou uma mensagem na qual afirmou que a entidade "continuará trabalhando (…) para ajudar a garantir que a coisa certa seja feita, que é permitir que todos os torcedores, independentemente do sexo, tenham a chance de ir aos estádios e desfrutar de uma partida de futebol"
Apesar desse último jogo, a situação segue delicada: a permissão de mulheres nos estádios valeu apenas para esta partida, e as autoridades não disseram se ela será aplicada à próxima rodada do campeonato nacional, no dia 21, nem no próximo jogo oficial da seleção no país, em março do ano que vem.
Entenda a situação
Antes dessa partida contra o Camboja, foi no dia 5 de outubro de 1981 que as mulheres puderam assistir a um jogo de futebol pela última vez. Os dois times mais populares de Teerã, o Esteghlal e o Persepolis , jogaram naquele no Estádio Azadi. Desde então a presença de mulheres passou a ser proibida. Algumas até puderam acompanhar partidas de forma esporádica, como na final da Liga dos Campeões da Ásia, em 2018, mas sem comprar ingressos, como no jogo da semana passada.
No Irã existia uma cultura das mulheres nos estádios. Elas sempre se interessarem pelo jogo, e fizeram parte dele. Ou praticando, torcendo, ou trabalhando com o futebol. Mas a revolução islâmica de 1979 transformou essa realidade, e o comportamento imposto às mulheres. Vestuário, trabalho, práticas esportivas, passeios de bicicleta, quase tudo mudou. Quase tudo passou a ser proibido.
Apesar de o país contar com uma Constituição, o comportamento das pessoas é ditado pela sharia, o conjunto de normas do Alcorão. As ideias islâmicas acabam retirando direitos das mulheres, como a ida aos estádios. Sob o ponto de vista dessa corrente do islã, o ambiente do futebol causa muita exposição às mulheres, e seria um território "pecaminoso" para elas.
Mas a pressão por mudanças é grande. As mulheres não aceitam passivas essa restrição. Mesmo proibidas, algumas torcedoras vão aos estádios disfarçadas. Esse movimento foi retratado em 2006 num filme muito importante, do cineasta Jafar Panahi: "Fora de jogo".
Outras mulheres participam ativamente de movimentos no exterior pedindo a permissão de mulheres nos estádios, como o coletivo "Open Stadiums", criado em 2005.
A situação voltou a chocar e provocar debate no mundo depois que a torcedora Sahar Khodayari morreu em setembro. Ela colocou fogo no próprio corpo enquanto aguardava julgamento por tentar assistir a uma partida. A FIFA – que passou a ser ainda mais cobrada depois da morte de Sahar – se posicionou de maneira mais forte com relação à proibição.
O futebol no Irã
Mesmo com tantas limitações, o futebol está organizado no país islâmico inclusive na base, com seleções montadas desde o sub-14 até a adulta. A estrutura ainda é difícil, já que existem poucos campos e clubes para atender o interesse. Além disso, o futebol feminino não pode ter técnicos homens, e ainda são poucas as mulheres habilitadas para ser treinadoras.
Além disso, o próprio movimento esportivo já atuou várias vezes contra atletas muçulmanos, atacando questões religiosas importantes.
A aceitação do mundo do esporte
Em 2011 a seleção de futebol feminino do Irã foi eliminada das eliminatórias para os Jogos Olímpicos de Londres 2012 porque as atletas se recusaram a tirar o hijab na partida contra a Jordânia.
A decisão da FIFA repercutiu, e várias entidades muçulmanas, além de outras de direitos humanos, como também atletas, se uniram em uma campanha chamada "Let us play".
As mulheres muçulmanas usam o hijab, um véu islâmico que cobre cabelo e pescoço. No dia a dia e também na prática esportiva. No Irã, por exemplo, o uso do véu pelas mulheres que se expõem publicamente é uma imposição do ordenamento jurídico. E isso já trouxe inúmeros problemas às federações esportivas do país. No futebol, no judô, no basquete, no boxe.
O problema é que regras esportivas de várias modalidades vedavam o uso do hijab em competições, alegando que ele poderia comprometer a saúde dos atletas, aumentando o risco de lesões na cabeça e no pescoço. O cenário ajudava a afastar ainda mais as mulheres muçulmanas de competições esportivas internacionais. De novo, um conflito entre Lex Sportiva e Direitos Humanos.
Com o auxílio da tecnologia, os véus foram adaptados à prática esportiva, diminuindo a força dos argumentos daqueles que defendiam que ele era perigoso e ameaçava a saúde dos atletas. A FIFA cedeu em suas regras e, em 2014, anunciou que permitiria o hijab em competições nacionais.
O diálogo venceu.
Ou seja, existe sempre a possibilidade do diálogo. Com bom senso e flexibilidade, é possível conciliar questões religiosas com o esporte, encontrando boas soluções para a sociedade. E esse diálogo só se torna possível com a mobilização de todos, das mulheres do Irã, dos movimentos sociais e das entidades esportivas.
Na semana passada mais uma vitória foi conquistada, nesse jogo que ainda não terminou.
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Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.