Só mudança na lei pode fazer rádios pagarem direitos de transmissão no país
Andrei Kampff
21/10/2019 04h00
"É gol, que felicidade! É gol, o meu time é a alegria da cidade". O refrão da música Replay, do Trio Esperança, traduz com fidelidade o momento da explosão de alegria que os torcedores têm ao ouvir pelo rádio o clube de coração marcar um gol no adversário. Mas um movimento surgido anos atrás para que as emissoras de rádio paguem pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro voltou a ganhar força nos últimos tempos, o que pode mudar o modo como alguns milhões de torcedores se informam dos acontecimentos das partidas Brasil afora. O modelo de negócios gera debate entre especialistas. Há quem entenda que obrigar as estações a pagar para transmitir as partidas do torneio poderia gerar um custo que as faria "desaparecer" do mercado, deixando milhões de pessoas sem poder acompanhar os jogos.
"A proposta vai chegar na CBF. A Assembleia Geral Ordinária com certeza seria o momento oportuno, pois nas Assembleia que se discutem vários assuntos. Mas no meu ponto de vista a CBF não vai se envolver", acredita Francisco Noveletto, vice-presidente da CBF.
Só que do ponto de vista prático essa mudança não é tão fácil. "Isso vai acabar com o rádio. Desconheço previsão legal que autorize esse tipo de cobrança. Só pode pode cobrar pela transmissão se o ordenamento jurídico der esse direito", esclarece o especialista em direito esportivo Martinho Neves.
VEJA TAMBÉM:
- Censura? Especialistas divergem sobre denúncias contra Jesus e Galiotte
- Mulheres voltam a torcer no Irã, mas presença em estádios não é garantida
- Roger tem razão, racismo existe também no futebol. E tem piorado
A Lei Pelé prevê, no artigo 42, apenas a cobrança pelos direitos de televisão, não falando sobre o rádio. Diz a redação do artigo: "pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem".
Apesar de terem de pagar pelos direitos de transmissão para competições internacionais, como a Copa do Mundo, no Brasil as rádios ficaram isentas do pagamento pela lei. Para cobrá-las, será preciso haver uma mudança na legislação brasileira.
Pelo fato de a Lei Pelé ser uma lei ordinária, o trâmite para a mudança é "simples", segundo o advogado especialista em direito constitucional Daniel Falcão. "Passa pelas comissões dos assuntos, nesse caso a Comissão de Esportes, a Comissão de Constituição e Justiça e a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. E aí é o trâmite do processo legislativo, vai para o plenário. Estando presente mais da metade dos membros da Casa, precisa de mais da metade dos votos desses presentes [para a aprovação]. Nada de especial", esclarece Falcão.
O rádio foi fundamental para o crescimento da paixão pelos brasileiros pelo futebol, alimentando as rivalidades e consolidando clubes Brasil afora.
"Antes mesmo do debate econômico, há de se interpretar a relevância social que o rádio tem com o produto futebol. Desde os primórdios, o rádio esteve intrinsecamente ligado a divulgação do futebol, com maior penetração que a televisão. Para boa parte da população, o futebol pelo rádio ainda é o grande programa do fim de semana. O futebol pelo rádio deveria ser caracterizado pelo país como patrimônio cultural do povo brasileiro, com amplo e irrestrito acesso à população", defende Hilton Malta, o Sombra, diretor artístico da rádio Energia 97, de São Paulo, que neste ano resolveu investir na transmissão do Campeonato Brasileiro pela primeira vez na história.
Segundo Sombra, a produção para que a Energia 97 transmitisse o principal torneio do país elevou os custos da emissora em 15%, mas ele acredita que ainda este ano a rádio encontrará o equilíbrio financeiro.
"Para nós, entrar nesse mercado foi um desafio pelo ineditismo da proposta no mercado brasileiro. Porém, com o suporte de imensa audiência do Estádio 97, o programa mais ouvido por homens de todas idades e classes sociais, conseguimos suplantar algumas barreiras iniciais. No momento em que o rádio luta para sobreviver, assim como todas as empresas no Brasil, a Energia 97 ousou, incrementou seu time, empregou pessoas que não tinham mais espaço no mercado, justamente pelo enxugamento de despesas que as emissoras adotaram para sua continuidade. Após pouco mais de quatro meses do projeto, já sentimos os primeiros resultados, situando-se entre as primeiras posições na audiência do futebol segundo o Ibope. Um crescimento rápido que nos credencia a continuar com o projeto em 2020, empregando mais pessoas, e inovando, marca registrada da Energia 97", acrescentou Sombra.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2016, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 2 milhões de lares brasileiros não contam com nenhum aparelho de televisão, em um universo de 69 milhões de casas.
"É possível sim que a rádio morra. Pouquíssimas rádios que vão ter dinheiro para pagar por essa transmissão. Muita gente não tem acesso ao canal de tv por assinatura e a tevê aberta passa dois jogos por semana. Então muita gente se não houver mais transmissão por rádio poderia ficar numa espécie de apagão das transmissões do futebol", alerta o advogado Daniel Falcão
O Direito de Transmissão é derivado do Direito de Propriedade e é aplicado sistematicamente ao Direito à Informação. A distinção está entre o que é informação e o que é transmissão. A Lei Pelé regulamentou que 3% do evento é informação e que o restante é transmissão. Por isso, para o presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SP, as rádios poderiam ser taxadas.
"No mundo as rádios pagam. As principais rádios têm patrocinadores? Ganham com a Transmissão? Não acho que acaba com as rádios", analisou o advogado.
Sombra discorda de quem acredita que as rádios conseguem lucros exorbitantes com a transmissão dos jogos.
"Aí, você me pergunta: 'mas as rádios não ganham dinheiro com esse produto?'. Em tese, deveriam, já ganharam. Hoje, as grandes emissoras, que são minoria no cenário brasileiro, mal conseguem sustentar suas equipes de transmissão. O que os dirigentes de clubes e federações acham que fatura uma emissora de rádio com as transmissões de jogos? Será que pensam que faturam o que a Rede Globo arrecada? Nem se somarmos todas as emissoras do Brasil, centenas, milhares, não se chegaria a um quinto do que a TV arrecada. Algumas das grandes emissoras fatalmente abandonariam as transmissões, pois, hoje, são deficitárias. Imagine a maioria das emissoras do Brasil, interioranas, tendo que pagar esse hipotético direito de transmissão? Não se sustentariam, demitiriam milhares de pessoas. Esperamos que os dirigentes tenham bom senso, e que os políticos atentem para este episódio. Já elitizaram os estádios, subiram os preços dos ingressos e, agora, indiretamente, querem fazer com o que a população tenha apenas a opção de pagar para saber em tempo real os acontecimentos da sua paixão, seu time", rebateu o radialista.
Por Thiago Braga
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.