Cruzeiro pode "falir? Entenda o que pode acontecer com o clube mineiro
Andrei Kampff
28/12/2019 04h00
O Cruzeiro estuda possibilidades para enfrentar grave crise financeira e administrativa. Uma das alternativas divulgadas seria a decretação de falência, o que não é possível juridicamente, porque o clube é uma associação e não uma empresa. "De acordo com o Código de Processo Civil, as associações sem fins lucrativos (inclusive um clube-associação) podem se sujeitar à insolvência civil, como ocorre com as pessoas físicas. Ainda que não se trate de um processo de falência, nem de recuperação judicial, o instituto é bem parecido", avalia Wladimyr Camargos, professor e advogado especialista em direito esportivo. Camargos, porém, faz uma ressalva. "Qualquer credor poderia requerer judicialmente a insolvência civil de um clube-associação. A própria entidade requerer isso é exceção."
Caso o Cruzeiro opte por tal alternativa e a insolvência, em razão da incapacidade de pagamento das dívidas, seja declarada, o juiz deverá nomear um administrador para gerir os bens restantes e utilizá-los para pagamento dos credores. "Assim, o clube segue sua vida, gerido por um administrador judicial no que concerne às finanças. Se os credores forem pagos, a 'intervenção' é retirada", completa Wladimyr Camargos.
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O Código Civil oferece outra possibilidade ao clube mineiro, a dissolução da associação. Com ela, o patrimônio também é utilizado para pagar dívidas e os bens que restarem devem ser entregues a uma outra entidade, igualmente sem fins lucrativos. "A associação que existe hoje deixa de existir e uma nova associação pode ser criada, com novo CNPJ", informa Gustavo Lopes, advogado especialista em direito esportivo.
O problema é que esta segunda opção gera grande prejuízo desportivo. O Cruzeiro teria que recomeçar do zero. Jogar a 3ª divisão do Campeonato Mineiro, passar pela 2ª divisão, até chegar a primeira novamente. O mesmo ocorreria no Campeonato Brasileiro: disputar a Série D e seguir buscando o acesso ano a ano. Todo esse processo duraria, pelo menos, cinco anos, se tudo der certo. "Uma análise tem que ser feita com muito critério, pelo preço desportivo que a 'refundação' geraria", acrescenta Gustavo Lopes.
Ainda com a extinção da associação, as dívidas que não forem pagas com o patrimônio podem "morrer". Mas, de acordo com o artigo 50 do Código Civil, a responsabilidade pelos débitos da associação pode ser transferida para os gestores que não conseguiram administrar bem o clube. Para isso, reforça Luciane Adam, advogada especialista em direito trabalhista, "é preciso comprovar que houve administração irregular, abuso ou fraude". Do contrário, é inviável proceder a chamada "desconsideração da personalidade jurídica". O mesmo acontece para a sucessão de dívidas, que podem ser repassadas à nova associação, caso a Justiça entenda que seja herdeira delas.
E quanto a possibilidade do Cruzeiro se tornar clube-empresa? Com o projeto que tramita no Congresso, o clube poderia fazer a migração de associação para sociedade anônima e imediatamente solicitar recuperação judicial. Mas a legislação atual só permite tal mudança após seis meses de existência da empresa.
A recuperação judicial ofereceria ao Cruzeiro um fôlego para trabalhar, já que não poderia ser cobrado pelos débitos durante 6 meses. De qualquer forma, tal medida, inviável no primeiro momento, também não livraria o clube das dívidas por condenação na FIFA, que estão por vir e não estão sujeitas à recuperação judicial, uma vez que a legislação aplicada a elas é suíça. E, caso não sejam pagas, podem gerar perda de pontos e até rebaixamento.
Wladimyr Camargos também alerta que "o clube pode se tornar empresa, mas há uma resolução da Receita Federal que não permite a mudança simples de personalidade jurídica. Ou seja, não poderia manter o mesmo CNPJ". O que resultaria no mesmo prejuízo desportivo da dissolução da associação para o surgimento de uma nova entidade sem fins lucrativos. Seria um recomeço para o Cruzeiro.
"Por isso, todos os casos atuais são de manutenção do clube-associação ao lado do clube-empresa, como Bragantino, Botafogo de Ribeirão Preto e Figueirense. Não é o mesmo que ocorre com os clubes-empresa que já foram criados com personalidade jurídica empresária", informa Wladimyr.
"Do ponto de vista esportivo, o recomeço seria uma tragédia, maior do que já aconteceu. Naturalmente, eu desconheço os balanços e a capacidade financeira do Cruzeiro de pagar as dívidas, mas me parece que o ideal seria o clube tentar um ato trabalhista para quitar débitos nesta esfera, procurar a Receita Federal, para tentar um refinanciamento, e procurar os credores com processos na FIFA, para negociar, oferecer garantia. Fazer uma gestão de crise e alertar o torcedor que o objetivo é sanear as contas e não cair. E aí seguir com o trabalho de reestruturação, que é bem melhor. Ficar dois ou três anos na Série B até se recuperar do que recomeçar do zero", avalia Gustavo Lopes.
Por Ivana Negrão
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Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.