Saiba por que time da terceira divisão belga abalou estrutura da FIFA
Andrei Kampff
30/07/2019 05h09
Liège é a terceira maior cidade da Bélgica, depois de Bruxelas e da Antuérpia. Uma cidade histórica, com uma bela arquitetura, e banhada pelo tranquilo rio Meuse. Foi lá que nasceu o poderoso imperador Carlos Magno. Entre as várias atrações que a cidade apresenta, não está o modesto time do RFC Seraing, que hoje joga na terceira divisão do futebol belga e não tem nenhum jogador de destaque no cenário do futebol. Se bem que no mundo jurídico esse clube é dos mais populares. Tudo por causa de uma briga que ele decidiu encarar contra a poderosa FIFA. E uma decisão do tribunal belga a favor desse pequeno colocou em xeque toda a cadeia jurídica do esporte.
Em dezembro de 2014, o Comitê Executivo da Fifa decidiu proibir a TPO (third-party ownership), que permitia que investidores comprassem todo ou parte dos direitos econômicos de um jogador. O objetivo dessa prática era receber um percentual do valor de uma futura transferência.
O clube belga não aceitou essa regra, e firmou dois contratos de TPO com a Doyen Sports Investment (um fundo de investimento), contrariando de maneira direta a determinação da entidade máxima do futebol.
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O caso seguiu todos os caminhos de uma grande batalha jurídica
Primeiro ele foi analisado pela Comissão Disciplinar da FIFA. A decisão veio em setembro de 2015, e a punição ao clube belga foi rigorosa: proibição de contratar jogadores durante quatro janelas de transferência. O clube também foi multado em mais de € 135 mil (cerca de R$ 550 mil em dinheiro de hoje) por ter "quebrado as regras relativas à propriedade de direitos econômicos dos jogadores por terceiros (TPO) e pela influência de terceiros".
O caso foi parar no Tribunal Arbitral do Esporte, o TAS. Ele confirmou que as restrições impostas pela FIFA à negociação dos chamados direitos econômicos de atletas eram legais em vista do direito da União Europeia. O Tribunal apenas reduziu de quatro para três anos o número de janelas de transferências durante as quais o Seraing não poderia recrutar novos atletas.
O TAS prestigiou os argumentos da FIFA e da UEFA segundo os quais tais entraves são legítimos tanto com vistas a evitar que a participação de investidores promova o chamado doping econômico em benefício de certos clubes, quanto para limitar o número de transações que, ao envolver pessoas externas ao meio do futebol, tendem a facilitar a prática de ilícitos como lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
O clube belga não se entregou e apresentou recurso de anulação contra a decisão TAS ao Tribunal Federal Suíço, que é a autoridade competente no movimento esportivo para se pronunciar sobre uma decisão do Tribunal Arbitral. O clube belga alegava falta de imparcialidade e independência desse Tribunal, e a contradição da proibição das TPOs com a ordem pública.
Em fevereiro de 2018, o tribunal estatal suíço rejeitou os argumentos, e a sentença foi mantida. Não havia mais caminhos jurídicos dentro do movimento esportivo, e o clube belga decidiu ultrapassar esse limite.
Tribunal belga e uma decisão surpreendente
O Seraing decidiu entrar com ação no tribunal belga. O clube alegou que o regulamento da FIFA que proíbe o uso da TPO violava a livre-iniciativa e a livre concorrência. E mais, eles também diziam que a sentença do TAS violava a ordem pública suíça, já que o tribunal não forneceu garantias suficientes de um tribunal arbitral independente. De acordo com ele, a determinação da entidade mundial estava influenciando diretamente "na independência e na política do clube".
Concretamente, o Seraing colocava em xeque a validade dos artigos 18bis e 18ter do Regulamento FIFA sobre o estatuto e a transferência de atletas. Ambos os dispositivos – como já foi dito aqui – que teriam sido infringidos pelo clube recorrente foram introduzidos com a finalidade de vedar o comércio entre pessoas externas ao futebol, ou seja, o TPO.
Do ponto de vista processual, o principal era determinar se o tribunal belga poderia declarar-se competente ou se deveria recusar sua jurisdição ao considerar que havia uma cláusula de arbitragem válida em favor do TAS que impediria qualquer ação judicial perante um tribunal ordinário (exceção de arbitragem). Baseadas nisso, a FIFA e a UEFA pediram a anulação do processo, ou que ele fosse encaminhado para Zurique, conforme determina regulamento das entidades esportivas.
O Tribunal de Recurso de Bruxelas negou os pedidos, e se disse competente para julgar o caso.
No dia 29 de agosto de 2018, ele se pronunciou de maneira surpreendente. A 18ª Câmara do Tribunal de Apelação de Bruxelas apresentou uma sentença de 25 páginas que abalou o modelo judicial e a organização piramidal do mundo esportivo.
Ele considerou a "arbitragem forçada" do Tribunal Arbitral do Esporte ilegal, e autorizou o recurso a tribunais estaduais. Na sentença disse que as cláusulas de arbitragem estabelecidas nos estatutos da FIFA, UEFA e suas federações-membro, que exigiam que as disputas legais deveriam ser resolvidas exclusivamente no TAS, violam o artigo 6 da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e artigo 47 da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
E agora?
A decisão poderia determinar um efeito cascata devastador na organização jurídica de todas as entidades esportivas internacionais e nacionais, abrindo a possibilidade para qualquer clube ou atleta de processar, por exemplo, a FIFA e a UEFA, na Justiça ordinária de seu país.
FIFA e TAS não seriam mais a última palavra jurídica em casos como esse.
Mas o alívio veio poucas semanas depois, com uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos.
Ela divulgou o resultado de dois recursos que também assustavam o ordenamento jurídico esportivo. A Corte sediada em Estrasburgo validou as bases do complexo sistema internacional de solução dos litígios esportivos, cujo órgão de cúpula é o Tribunal Arbitral do Esporte. Os casos envolviam a patinadora alemã Claudia Pechstein e o futebolista romeno Adrian Mutu. Para rejeitar os recursos apresentados pelos atletas, a Corte indicou que a dinâmica adotada pelo TAS, entidade que proferira sentenças contestadas, não violara o direito dos envolvidos a um processo justo.
O veredito, que seria comemorado pelo movimento esportivo a qualquer tempo, ganhou maior importância depois do "revés" sofrido no caso envolvendo Seraing.
Mas essa história é uma outra juri-história.
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.