Mundial na China e Copa no Qatar. E política da Fifa para direitos humanos?
Andrei Kampff
05/11/2019 04h00
Está decidido. A partir de 2021 o Mundial de Clubes da FIFA terá 24 equipes e será disputado de quatro em quatro anos. A primeira sede também foi confirmada, a China. Tão logo a decisão foi anunciada, a entidade foi alvo de críticas disparadas de várias partes do mundo, uma vez que essa escolha contraria algo que ela foi obrigada a criar: a política de direitos humanos aprovada em 2017.
O presidente Gianni Infantino, inclusive discursou várias vezes sobre essa nova política da entidade. Mesmo assim, anunciou a China como sede de um ambicioso campeonato mundial de clubes, um país que encarna uma relação desconfortável de esportes, dinheiro, política e direitos humanos. Na entrevista coletiva, Infantino evitou falar diretamente da China:
"Não é missão da FIFA resolver os problemas do mundo", disse ele. "A missão da FIFA é organizar o futebol e desenvolver o futebol em todo o mundo."
Veja também:
- Empresa contra manipulação no esporte é acusada de ceder dados para a máfia
- Feriado não acalma Chile e assusta Conmebol por final da Libertadores
- África do Sul na final do mundial de rúgbi lembra papel social do esporte
A situação na China
A China vive constantemente em conflito com entidades globais de defesa dos direitos humanos. Recentemente, elas condenaram o governo chinês por prender mais de um milhão de membros de grupos étnicos predominantemente muçulmanos na região oeste da China, em Xinjiang.
Além disso, para entidades de defesa de direitos humanos o país oriental não abraça os princípios da ampla defesa, a liberdade de expressão é cerceada, e existe discriminações de gênero, falta de liberdade de orientação sexual, religião, e ausência de democracia.
Por outro lado…
Por conta do poderio econômico, a China segue sendo protagonista em grandes momentos esportivos. A Olimpíada de 2008 foi lá. Mas é importante destacar que o Comitê Olímpico Internacional exigiu que o país assinasse compromissos em defesa de princípios caros ao esporte. A China fez algumas melhorias na abertura política e nos direitos humanos, pelo menos temporariamente.
Com a Fifa nada foi divulgado. O "negócio" falou mais alto. A China é um protagonista do mercado global, e o país também adotou em 2015 uma política estatal de incentivo ao futebol. O presidente Xi Jinping é um apaixonado pelo jogo, e quer transformar o país numa potência do esporte. E dinheiro eles têm para isso, inclusive para levar o Mundial de Clubes para lá. Inclusive o grupo chinês Dalian Wanda é hoje um dos principais parceiros econômicos na entidade maior do futebol.
A Fifa tinha dois caminhos, pesou mais a questão financeira. As críticas se tornaram inevitáveis.
Em entrevista para o New York Times, Minky Worden, diretora de iniciativas globais da Human Rights Watch, que assessorou a FIFA em várias questões, disse que a escolha não consultou as principais partes interessadas, e que a decisão demonstrou um "padrão duplo", já que exigiu que os concorrentes da Copa do Mundo de 2026 atendessem a um padrão de direitos humanos mais alto que a China apresenta:
"A FIFA não fez a pergunta para a qual eles não queriam saber a resposta", disse Worden.
Mais uma vez, não houve a prometida "transparência" da entidade que manda no futebol para esclarecer os motivos da escolha. A Fifa repete um padrão que já a fez mudar.
As escolhas por Rússia e Qatar
Foram escolhas muito criticadas – e suspeitas – que fizeram a Fifa adotar uma Política deu Recursos Humanos. As escolhas para as Copas de 2018 e 2022.
A Fifa sabia que Qatar e Rússia são países que violam várias das cartas internacionais que tratam de direitos humanos. Mesmo assim, a entidade, em escolha que depois apresentou sérios indícios de corrupção, escolheu Rússia e Catar como sede dos Mundiais de 2018 e 2022, respectivamente. Direitos humanos, claro, era um "assunto menor" diante do "negócio Copa do Mundo".
A entidade sabia, entre outras coisas, que os dois países não respeitavam direitos básicos de imigrantes que ajudaram a construir os estádios do Mundial de 2018. A revista norueguesa Josimar, inclusive, publicou um artigo intitulado "Os Escravos de São Petersburgo", sobre o tratamento dado aos operários que ajudaram a construir os estádios do último Mundial de futebol.
No Qatar, muitas questões relativas a direitos humanos também são esquecidas, também na área do direito do trabalho.
As construções para as arenas do mundial de 2022 não são levantadas por cataris (cidadão do país), mas por imigrantes, na sua maioria indianos. Esses trabalhadores, ao chegarem ao país, eram submetidos a um sistema trabalhista histórico por lá chamado Kafala. Nele são estabelecidas relações entre cada trabalhador e seu "patrocinador", normalmente o empregador.
De acordo com esse sistema, o empregado virava refém do empregador. Ele ficava sujeito à autorização do patrão para realizar diversas atividades, como alugar imóvel, sair do país, trocar de emprego. Além disso, recebia muito menos que um trabalhador local e tinha o passaporte retido por esse "patrocinador", que se negava a fornecer vistos para saída do país.
Simples, escravidão. Com princípios de direitos humanos esquecidos e a própria Constituição local desprezada, já que ela também fala em respeito a direitos humanos.
Operários, inconformados com essa realidade na construção de arenas para o evento da Fifa, decidiram entrar com uma ação judicial contra a entidade que manda no futebol mundial, com o apoio de vários sindicatos. Eles pediam que a federação agisse contra as frequentes violações de direitos humanos, garantindo liberdades fundamentais aos trabalhadores migrantes, abolindo o sistema Kafala.
Claro que a FIFA sabia das condições de trabalho no Catar.
Em decisão de janeiro de 2017, a corte de Zurique entendeu que apenas o Estado soberano do Catar seria capaz de promover mudanças no sistema de trabalho que impedissem violações a princípios de direitos humanos naquele país. Também entendeu que a FIFA não tinha nenhuma relação comercial com Nadim Alam, afastando assim a jurisdição do tribunal para análise da matéria.
Importante destacar aqui que a corte europeia não disse que a FIFA não poderia ser responsabilizada pelos maus-tratos aos operários e violações a direitos humanos, já que ela decidiu com base nos critérios de jurisdição do tribunal, deixando de se manifestar com relação ao mérito.
A FIFA ganhou no tribunal, mas perdeu esse jogo. Movimentos de direitos humanos, patrocinadores da entidade, sindicatos, estudiosos do esporte, todos se juntaram em um grande movimento condenando o trabalho que levantava estádios para o principal evento da entidade. A irritação sofrida acabou provocando a federação a ter uma postura mais incisiva frente às autoridades cataris para que revogassem o sistema Kafala. E mais, a entidade criou uma comissão para inspecionar as obras para o Mundial.
Diante dessas mudanças, a Anistia Internacional se pronunciou afirmando que "finalmente parece que a FIFA está acordando para o fato de que, a menos que tome medidas concretas, a Copa do Mundo de 2022 no Catar será construída sobre suor, sangue e lágrimas dos imigrantes".
A FIFA cedeu
Além da pressão por conta dessas questões sociais, um escândalo de corrupção complicou ainda mais a vida da entidade que manda no futebol. O Fifagate foi avassalador.
Depois do tsunami que afastou a cúpula da entidade, prendendo alguns dirigentes como o brasileiro José Maria Marín, e com a imagem afetada pelas escolhas das sedes do Mundial de 2018 e 2022. a FIFA decidiu adotar uma política de defesa dos direitos humanos.
Diante desse movimento de pressão, e abalada por sérias denúncias de corrupção, a FIFA precisava mudar. Então, ela decidiu investir em uma agenda positiva, tendo os direitos humanos como protagonista.
A entidade-mor do futebol mundial incluiu em seu Estatuto, no art. 3, a previsão de que a "FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos". E foi além, encomendou ao professor John Ruggie, uma autoridade mundial no assunto, a elaboração de um relatório com recomendações para implementação o de uma política de direitos humanos, implementada em maio de 2017.
O relatório de Ruggie trouxe 25 recomendações e deu origem à Política de Direitos Humanos da FIFA, trata de:
– direitos trabalhistas;
– direitos de habitação;
– combate à discriminação;
– segurança nos grandes eventos;
– direitos dos atletas.
A FIFA estabeleceu expressamente compromisso de se articular construtivamente com os Estados para sustentar a sua política de direitos humanos, e a observância desses direitos passaria a ser critério para a escolha das sedes dos eventos da entidade.
No livro "Lex Sportiva e Direitos Humanos: Entrelaçamentos Transconstitucionais e Aprendizados Recíprocos", o professor Vinícius Calixto explica:
"A escandalização gerada pela deflagração dos esquemas de corrupção aliada aos problemas envolvendo violações de direitos humanos, com destaque para a situação dos trabalhadores migrantes no Catar, e a necessidade de retomar a credibilidade da instituição fizeram com que a FIFA tomasse medidas para retomar a sua credibilidade, buscando promover maior democracia, transparência e accountability, e mudando sua postura frente à proteção e promoção de direitos humanos".
A partir dessa nova política, a organização mandava um recado de que exigiria que as revisões de direitos humanos fizessem parte do processo de licitação de seus eventos. Inclusiva, ela conduziu análises de Marrocos e da América do Norte antes de determinar no ano passado que a Copa do Mundo de 2026 será nos Estados Unidos, Canadá e México, e mesmo assim criticou os Estados Unidos e o Canadá por falta de compromissos específicos com os direitos humanos.
Essa nova política que. inclusive, ajudou a pôr fim na proibição de quase quatro décadas do Irã de mulheres entrarem em estádios de futebol. Uma briga que ainda não terminou, já que a presença feminina não está garantida para os próximos jogos.
Mas a entidade nem sempre toma os mesmos caminhos.
Novos problemas
Eis que agora, o Mundial de Clubes será na China. E a Fifa também discute aumentar para 48 seleções participantes na Copa do Qatar. Se isso se confirmar, o país precisará da ajuda de algum país vizinho. Todos eles também contrariam vários dos princípios básicos de direitos humanos, inclusive nas relações de emprego.
Neste ano, a Anistia Internacional, em conjunto com outros órgãos de defesa dos direitos humanos, enviou uma Carta Aberta à entidade alertando para as violações de direitos humanos ocorridas nos países cogitados para sediarem em conjunto o evento de 2022, especialmente relacionadas ao sistema trabalhista exploratório, às discriminações de gênero, orientação sexual, religião, e às restrições à liberdade de associação e de livre expressão.
O objetivo da Carta Aberta é chamar a atenção para que a FIFA observe justamente a sua Política de Direitos Humanos, além dos Princípios Orientadores sobre Negócios e Direitos Humanos da ONU.
O pressão contra a FIFA
Com a possibilidade de expansão do Mundial de 2022, e com o novo Mundial de clubes que terá sede na China, a FIFA está novamente sob pressão de organizações de defesa dos direitos humanos, como também de patrocinadores que podem ter imagem arranhada por estar ligado a países pouco democráticos. e afeitos a causas mais humanitárias.
A Fifa de novo está diante de um problema: como valorizar a Política de Direitos Humanos, divulgada em 2017 como um dos marcos da nova gestão, diante dessas escolhas? A saída do ex-presidente Joseph Blatter após o maior escândalo de corrupção da história do esporte, o novo estatuto, e o discurso repetido de defesa dos direitos humanos davam uma ideia de um recomeço, na tentativa de dar mais credibilidade a entidade. Uma credibilidade que sofre uma derrota a cada escolha como a do Mundial de Clubes na China.
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.