Para as iranianas do esporte, fugir é resistir
Andrei Kampff
04/02/2020 13h00
A lutadora de Taekwondo Kimia Alizadeh comunicou a decisão de deixar o Irã em meio as tensões militares do país com os Estados Unidos. A declaração foi feita por meio do seu perfil oficial no Instagram. Na rede social, a atleta, que fez história nas Olímpiadas do Rio de Janeiro ao se tornar a única mulher medalhista do Irã, o que lhe rendeu o apelido de "Tsunami", falou sobre sua despedida rumo à Europa:
"Deixe-me começar com uma saudação, uma despedida ou condolências. Eu sou uma das milhões de mulheres oprimidas no Irã com quem eles brincam há anos. Eles me levavam para onde queriam. Eles usavam tudo o que eu dizia. Tudo o que eles me mandavam dizer, eu dizia. Eles me exploravam", disse. "Eu não era importante para eles. Nenhum de nós importava para eles. Nós éramos ferramentas".
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Kimia diz ainda que, apesar de tudo, nunca deixará de ser "filha do Irã". Assim como ela, mulheres que gostam de esporte sofrem no próprio país.
No Irã mulheres não podem frequentar estádio em jogos entre homens
A Revolução Islâmica de 1979 transformou o país em uma República baseada nos preceitos religiosos do islamismo e mudou radicalmente a estrutura social do país. As mulheres foram muito atingidas nesse processo, e a participação feminina no mundo esportivo é um exemplo.
Um exemplo recente muito comentado foi o da presença de mulheres em jogos de futebol.
Apesar de o país contar com uma Constituição, o comportamento das pessoas é ditado pela sharia, o conjunto de normas do Alcorão. As ideias islâmicas acabam retirando direitos das mulheres, como a ida aos estádios. Sob o ponto de vista dessa corrente do islã, o ambiente do futebol causa muita exposição às mulheres, e seria um território "pecaminoso" para elas.
Mas a pressão por mudanças é grande. As mulheres não aceitam passivas essa restrição. Mesmo proibidas, algumas torcedoras vão aos estádios disfarçadas. Outras participam ativamente de movimentos no exterior pedindo a permissão de mulheres nos estádios, como o coletivo "Open Stadiums", criado em 2005.
A situação das mulheres nos estádios parecia caminhar para uma flexibilização quando, no ano passado, um grupo de mais de mil torcedoras pôde assistir à final da Liga dos Campeões da Ásia, entre Persépolis e Kashima Antlers. Infantino estava presente no Estádio Azadi nesse jogo. Mas depois da final, as torcedoras não tiveram mais acesso a jogos.
Uma esperança
A situação voltou a chocar e provocar debate no mundo depois que a torcedora Sahar Khodayari morreu no ano passado. Ela colocou fogo no próprio corpo enquanto aguardava julgamento por tentar assistir a uma partida de futebol.
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, se posicionou de maneira mais enfática:
"Nossa posição é firme e clara. As mulheres precisam entrar nos estádios de futebol do Irã." O presidente disse também que "agora é o momento de mudar as coisas, e a Fifa espera desenvolvimentos positivos a partir do próximo jogo em casa do Irã, em outubro".
A verdade é: a FIFA tinha finalmente abandonado um silêncio absurdo, e decidiu se manifestar. Claro que ela já vinha sendo influenciada por esse movimento global que luta por mais liberdade às mulheres no Irã.
É sempre bom destacar que os artigos 3 e 4 do estatuto da FIFA apontam o compromisso da entidade com os direitos humanos e a luta contra discriminação de qualquer tipo – explicitando a questão de gênero –, pela igualdade e neutralidade. Mas nem sempre a entidade olha para o próprio estatuto.
Por mais que o Estatuto se refira a assuntos relacionados ao jogo, a imagem do esporte também se vê prejudicada nessa grande discussão, e por isso a FIFA trabalha com diplomacia, mas usando instrumentos de pressão para garantir o acesso das mulheres.
Agora, é sempre importante destacar que, como associação civil suíça, a FIFA pode regular o seu sistema, com poder efetivo sobre as competições que organiza. Mas também é verdade que deve respeitar a legislação local, e as leis esportivas de cada país. Logo, não pode impor, de forma direta, alguma regra sem haver uma justificativa.
Por isso, o principal papel da Fifa tem o de ser de entender as imposições sociais do esporte, provocar o diálogo e se manifestar naquilo que o estatuto determina como fundamental. Dessa forma, a entidade assume um papel de protagonista, impulsionando novas políticas, novas práticas, uma nova realidade. O mesmo vale para o Comitê Olímpico Internacional.
Jogo histórico
O Irã goleou o Comboja pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022. E não foi uma goleada qualquer, 14 a 0! Um presente para um público especial que comparecia a um estádio iraniano depois de 38 anos: as mulheres. Um feito para comemorar – a presença feminina –, mas também para mostrar que o caminho ainda está longe do fim.
A batalha de um movimento global que luta pelo direito das mulheres de poder escolher ir ou não a um jogo de futebol teve uma vitória pontual, mas já tem novos desafios pela frente.
Agora as mulheres querem poder comprar ingressos (o que só é permitido para homens), e poder também escolher onde sentar (elas tiveram um lugar determinado nessa partida pelas eliminatórias). Além disso, nesse jogo apenas 3.500 lugares foram reservados as mulheres, contrastando com mais de 70 mil destinados aos homens. Elas não querem uma limitação de presença.
Depois do jogo, o italiano Gianni Infantino, divulgou uma mensagem na qual afirmou que a entidade "continuará trabalhando (…) para ajudar a garantir que a coisa certa seja feita, que é permitir que todos os torcedores, independentemente do sexo, tenham a chance de ir aos estádios e desfrutar de uma partida de futebol"
Apesar desse jogo, a situação seguia delicada: a permissão de mulheres nos estádios valia apenas para aquela partida, e as autoridades não disseram se ela seria aplicada também no campeonato nacional, nem no próximo jogo oficial da seleção no país, em março.
"Nossa demanda é por acesso completo para mulheres em todos os jogos, em todos os estádios do Irã", declarou a ativista iraniana Maryam Shojaei, do movimento No Ban For Women.
Como é
Como era esperado, após o jogo histórico, as restrições às mulheres voltaram no campeonato iraniano.
A verdade é que o movimento esportivo não tem força para mudar as leis nacionais. A mudança definitiva não pode ser imposta por ele. Mas ela pode surgir da pressão de movimentos globais, do ativismo das próprias mulheres iranianas, e com a diplomacia. É preciso diálogo, permanente, para buscar uma solução para mulheres que gostam de esporte, e não querem deixar o Irã.
Mas nessa hora, antes de julgamentos definitivos, é importante praticar um exercício antropológico. É sempre necessário nessa hora tem enxergar as coisas com o olhar do outro, e evitar cair no julgamento rápido e de acordo com a própria cultura. É possível que muitas mulheres até concordem com o regime patriarcal e machista.
Mas aquelas que têm o esporte como vocação, paixão, essas não. Essas sofrem. Como as que querem assistir a uma partida de futebol, ou como Kimia. Pra essas mulheres, fugir é resistir.
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.