Justiça Esportiva também precisa de legitimidade social
Há algo indispensável a sobrevivência do esporte, sua autonomia.
A nossa Constituição Federal de 1988 inovou, e se tornou também a Lei Maior do esporte brasileiro. Ela entendeu a importância da área, sua influência na cultura brasileira, e suas necessidades jurídicas.
A Carta de 88 atribuiu autonomia à Justiça Desportiva para solucionar os litígios responsáveis por influenciar diretamente o campo esportivo, como infrações às regras do jogo, à disciplina e à organização do desporto. E só. Ou seja, a Justiça Esportiva, é uma justiça especializada, que ganhou autonomia constitucional para decidir sobre determinadas questões, mas possuindo uma eficácia limitada. E é nessa limitação que esta garantido o Livre Acesso à Justiça – princípio da Inafastabilidade da Jurisdição-, expresso na Constituição em seu art 5º, inciso XXXV.
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Ou seja, a CF limita o poder do Estado sobre o esporte. liberando a Justiça Esportiva de uma tutela estatal histórica. E claro que é importantíssimo. Ter um justiça especializada, e um caminho jurídico que respeite essa cadeia solução de litígios esportivos passa a ser crucial para a sobrevivência do movimento esportivo da forma como é organizado hoje.
Ela precisa agora buscar a legitimidade social, e ela se conquista com integridade, com coerência.
É sobre o que escreve o professor Wladimyr Camargos, advogado especializado em Direito esportivo e colunista do Lei em Campo.
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Para legitimar-se, a Justiça Esportiva depende de integridade e coerência
Faço uma breve pausa no resgate da história do Direito Esportivo para um necessário balanço acerca do que revelei nas colunas passadas acerca do surgimento da Justiça Esportiva no Brasil.
As fiéis leitoras e os fiéis leitores que vêm acompanhado esses textos poderiam afirmar com margem de segurança que a justiça esportiva brasileira nasceu tutelada e se desenvolveu desde o início sob o arbítrio.
Obviamente que foi a Constituição de 1988 que, ao reconhecer o limite à atuação do Estado no esporte por meio da inscrição do princípio da autonomia esportiva em seu próprio texto (art. 217, inciso I), alforriou a Justiça Esportiva desta tutela explícita e não negada que já perdurava mais de 40 anos.
É claro também que as leis gerais do esporte que sucederam à nova Carta pecaram em não estar em total consonância com o texto constitucional. Afinal, continuar e empoderar o Estado para ditar regras de disciplina e competições não é escorreito do ponto de vista constitucional.
Como, então, a Justiça Esportiva pode dar vazão à autonomia a ela reconhecida desde 1988 e se livrar do risco constante de tutela?
A pergunta é complexa e, portanto, não enseja uma resposta simples. Contudo, algo é certo: a Justiça Esportiva somente estará livre da tutela histórica se se mostrar pertinente, relevante, íntegra e coerente.
Este, na verdade, é o problema de sua própria legitimidade.
Não haverá Justiça Esportiva legítima se ela não se mostra pertinente.
A pertinência tem origem na palavra "pertencimento". Por isso mesmo, a Justiça Esportiva necessita demonstrar a cada dia que faz jus a pertencer ao sistema jurídico brasileiro, como preconiza a Constituição. Que está concernente ao sistema esportivo que a criou, ainda que depois usurpada por poderes políticos, apropriada pelo Estado e tutelada por interesses não endêmicos ao mundo do esporte.
Ser pertinente, assim, significa estar vinculada aos objetivos do olimpismo e do acesso à prática esportiva a todos (desiderato mais importante, ao ponto de estar inscrito tanto na CF como nas normas de Direito Internacional Esportivo).
Deve a Justiça Esportiva estar estritamente vinculada à ideia de jogo limpo. Mostrar-se sempre afeita e afeta pelo ecossistema do esporte.
Cabe também à Justiça Esportiva mostrar-se relevante. Etimologicamente, relevante é aquilo que tem relevo e, consequentemente, está no alto, no cume. À Justiça Esportiva cabe liderar o sistema jurídico esportivo, mostrar-se importante nesta tarefa que lhe impõe o mundo à qual pertence com relevo.
Em terceiro, mas nunca menos importante, cabe à Justiça Esportiva agir com integridade.
Já mostrei diversas vezes aqui na coluna que o Direito Esportivo se filia estritamente à noção de integridade. Seja na prática esportiva geral seja no esporte competitivo, a integridade é sempre uma forma e mesmo uma meta. Praticar esporte de modo íntegro e obter a vitória sempre com integridade. Assim, cabe ao Direito Esportivo apontar os caminhos normativos e processuais para se manter a integridade, o jogo limpo (fair play).
Se a Justiça Esportiva, como mostrei acima, só será pertinente se se mostrar merecedora de pertencer ao sistema que lhe deu a liderança jurídica, também só será justa se agir no resguardo da integridade esportiva agindo de modo juridicamente íntegro. E o que é integridade no Direito? Trago à luz o modo como um dos maiores juristas contemporâneos do globo, Ronald Dworkin (O império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 271) tem a dizer sobre isso:
"O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro […]"
Dworkin, por entender que vivemos em uma "comunidade de intérpretes, liga o Direito à integridade enquanto algo que se revela desde a moral. Sendo assim, afasta da interpretação jurídica as pretensões abusivas. E vê a decisão jurídica como algo que se volta ao passado, mas sempre também presente no futuro. O que significa isso? Dworkin está preocupado em mostrar que integridade tem a ver com coerência com a história jurisprudencial, das decisões precedentes daquele tribunal ou sistema de justiça. Não é possível julgar de modo correto no presente desconhecendo a narrativa jurídica da respectiva casa judicante. Contudo, o passado não paralisa o futuro.
Como, então, avançar com a jurisprudência sem se aferrar estritamente às decisões pretéritas?
Como Dworkin entende que o processo é um "romance em cadeia", onde o decisor irá escrever mais uma página em uma história que começou a ser narrada no passado e por um conjunto de pessoas e não apenas por ele, o que o atual órgão de decisão trouxer de novo ao processo se assentará sempre no passado, mesmo que para modificar a linha jurisprudencial. Mostrar que a evolução se dá porque algo do pretérito já não mais se amolda ao presente ou atrapalha o futuro. Cuidar para que a modificação do precedente não se dê em razão de interesses pessoais, pretensões abusivas ou qualquer fator interno que abale a noção de integridade.
Portanto, a Justiça Esportiva, ao cuidar da manutenção da integridade no esporte deve se mostrar íntegra na sua totalidade, principalmente no que concerne à integridade de suas decisões.
O oportunismo, a subserviência aos poderosos, o se curvar às pressões, minam a integridade da Justiça Esportiva.
Ao contrário, ao se mostrar íntegra em suas decisões, e COERENTE com seus precedentes, sua linha jurisprudencial, a Justiça Esportiva está no caminho da legitimidade social.
Em resumo, aos membros da Justiça Esportiva, inclusive os que atuam perante os órgãos da procuradoria, há a tarefa diária de se legitimarem socialmente, especialmente no ecossistema esportivo para, a partir daí, terem plena legitimidade jurídica.
Pertinência, relevância, integridade e coerência devem estar sempre presentes nas atividades dos membros da Justiça Esportiva como condição para que, cotidianamente, revertam isso em legitimidade à sua atuação e ao órgão ao qual sirvam.
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