Intervenção do Estado no esporte não é novidade. E já até comemorada
Andrei Kampff
13/01/2020 14h48
O esporte é algo que mobiliza as pessoas. E Getúlio Vargas, craque que era em interpretar paixões e desejos populares, decidiu tomar conta também do movimento esportivo brasileiro.
Com um governo estatizante, centralizador e com forte viés nacionalista, Vargas decidiu criar um órgão estatal para comandar o esporte no país. O Conselho Nacional de Desportos (CND), ocupou o topo da pirâmide esportiva nacional. O decreto 3199/41, nossa primeira Lei Geral do Esporte, explicitou a tutela do Estado ao determinar que TODOS os cargos do CND seriam indicadas pelo Governo Vargas.
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Até hoje, a autonomia esportiva enfrenta seguidamente violências a sua autonomia, mesmo estando ela presente no seu DNA e sendo protegida constitucionalmente no Brasil.
Saiba sob que argumentos o Governo Vargas criou o CND, e qual foi a reação da imprensa à época com o professor Wladimyr Camargos, especializado em direito esportivo e colunista do Lei em Campo.
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Concluí 2019 comentando aqui a ata de instalação do poderoso e longevo Conselho Nacional de Desportos – CND. Lembro que o Estado Novo havia resolvido instituir um órgão estatal encarregado de dirigir os esportes no Brasil. A centralização em torno do novo colegiado o colocou como verdadeiro ápice da Pirâmide Olímpica nacional, visto que as confederações esportivas, inclusive a Confederação Brasileira de Desportos – CBD, ficaram submissas a ele.
O Decreto-lei n° 3.199, de 1941, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas em 14 de abril daquele ano, previa que o CND tivesse todas suas vagas ocupadas por pessoas por ele indicadas e nomeadas, vinculando-o ao Ministério da Educação e Saúde – MES, então dirigido pelo Ministro Gustavo Capanema.
Somente um dia depois da assinatura do decreto-lei, a edição de 15 de abril de 1941 do popular Jornal dos Sports, dirigido por Mário Filho (maior cronista esportivo da história do Brasil e que dá nome ao Estádio do Maracanã) estampava com bastante destaque em manchete na primeira página: "REGULAMENTADOS OS SPORTS NACIONAES – O importante decreto assignado pelo Chefe da Nação", dando notícia da entrada em vigor justamente da primeira Lei Geral do Esporte de nosso país. E continuava ainda na página um: "Nacionalização, Isenção de Impostos e Diffusão em Todo o Paiz, As Consequencias Immediatas da Regulamentação".
O diário dava ampla cobertura acerca das consequências da edição do Decreto-lei e tinha clara inclinação de apoio à "intervenção" que o Estado Novo promovia no esporte nacional. Na segunda página, inclusive, transcrevia a íntegra da lei antes mesmo de sua publicação no Diário Oficial da União, o que ocorreria somente no dia seguinte.
Além da reprodução do texto normativo, esta edição do Jornal dos Sports também trouxe a exposição de motivos escrita pelo Min. Capanema ao Pres. Vargas quando do encaminhamento do anteprojeto de decreto-lei escrito pela comissão responsável por sua redação, conforme já narrei aqui na coluna em edições passadas.
Assim, peço licença às amigas e amigos leitores para reproduzir na íntegra a carta ministerial (na grafia da época), dado o seu valor histórico:
"27 de novembro de 1940.
Sr. Presidente,
Tenho a honra de submetter à elevada consideração de v. ex. um projecto de decreto-lei destinado a fixar as bases da organização dos desportos em todo o paiz.
Os desportos vêm sendo praticados entre nós há muitos decennios, e já conseguiram, em grande número de suas modalidades, um desenvolvimento realmente notável, do que é expressiva prova o êxito de jogadores brasileiros em diversas e memoráveis competições internacionaes.
Vêm todavia os desportos nacionaes resentindo-se da falta de organização geral e adequada que lhes imprima a disciplina necessária à sua correcta pratica, conveniente desenvolvimento e útil influencia na formação espiritual e physica da juventude brasileira.
Não se deve ainda esquecer a tendência, verificada entre nós, com em outros paízes, à profissionalização de grande número de atictividades desportivas, facto determinado por circunstâncias imperiosas e tornado por isso mesmo inevitável, mas que precisa ser objecto da máxima attenção dos responsáveis pela educação nacional, visto como não se pode deixar de reconhecer que somente o amadorismo desportivo constitue processo educativo por excellencia, merecendo, portanto do governo amparo especial e orientação conveniente.
É de notar também, que no domínio das praticas desportivas não raro podem implantar-se certos elementos de desnacionalização, e esta verificação é de moldes a exigir medidas que, eliminando taes elementos, conservem os desportos permanentemente com um dos meios de educação cívica da mocidade e como uma viva expressão da energia nacional.
Por taes motivos é que, no anno passado, tive ensejo de propor v. ex. a creação de uma commissão especial destinada a estudar o problema dos desportos e propor ao governo um plano de sua organização.
A commissão, constituída por elementos civis e militares de significativa expressão intellectual e cívica, apresentou a este Ministério um valioso trabalho, em que a difficil matéria foi convenientemente resolvida e disciplinada.
Serviu este trabalho de base ao projecto que ora tenho a honra de submetter ao criterioso julgamento de v. excellencia.
Supprimindo certas disposições e accrescentando outras, introduzindo taes e taes modificações na estructura apresentada, tive em mira atender a muitas das sugestões que, depois de divulgado o trabalho da commissão, fizeram instituições interessadas e órgãos da imprensa.
É de crer, postas em execução as medidas consubstanciadas no projecto ora concluído, os desportos nacionaes, entrem a ter uma disciplina e um vigor novos, e passe a ser muito mais do que agora, e como o deseja e quer v. ex. um poderoso instrumento de educação da juventude no nosso paiz.
Neste ensejo apresento a v. ex. os protestos da minha constante estima e cordial respeito – (a) Gustavo Capanema"
Vou voltar a este assunto na próxima edição, analisando em pormenores este importantíssimo registro através do qual se pode reconstituir a narrativa por trás da tutela da organização esportiva do Brasil por parte do Estado, que ali nascia e que, de certo modo, perdura em menor ou maior medida nos tempos atuais.
Sobre o autor
Andrei Kampff é jornalista formado pela PUC-RS e advogado pela UFRGS-RS. Pós-graduando em Direito Esportivo e conselheiro do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo e criador do portal Lei em Campo. Trabalha com esporte há 25 anos, tendo participado dos principais eventos esportivos do mundo e viajado por 32 países atrás de histórias espetaculares. É autor do livro “#Prass38”.
Sobre o blog
Não existe esporte sem regras. Entendê-las é fundamental para quem vive da prática esportiva, como também para quem comenta ou se encanta com ela. De uma maneira leve, sem perder o conteúdo indispensável, Andrei Kampff irá trazer neste espaço a palavra de especialistas sobre temas relevantes em que direito e esporte tabelam juntos.